Em notícias biográficas sobre Teresa Lima, é possível ler que a artista nasceu em Lisboa, em 1962, e que nesta cidade concluiu o Curso de Pintura da Faculdade de Belas Artes. Talvez valha a pena acrescentar que Teresa Lima é mãe e professora, o que decerto contribuiu para um conhecimento, de experiência feito, acerca do mundo da criança. Aliado a uma memória viva da sua própria infância, esse saber terá de uma forma ou de outra reforçado a sua enraizada vocação de ilustradora de literatura para crianças. Participando, desde 1986, em exposições colectivas de pintura e desenho, foi distinguida com alguns prémios e menções honrosas e dedicou-se também à concepção de capas para livros, o que já prenunciava a actividade que a tornou conhecida: a ilustração de livros infantis.
O que primeiramente cumpre assinalar, no percurso desta artista, é o facto de ter dedicado o melhor do seu labor à difícil arte de ilustrar livros para crianças, fazendo-o em detrimento de outros tipos de ilustração. Esta especialização permitiu a Teresa Lima um conhecimento mais profundo do seu campo de trabalho e das peculiaridades do livro infantil (condicionado pelo público preferencial e pelos consequentes constrangimentos editoriais), proporcionando-lhe em simultâneo condições para a consolidação gradual de um estilo próprio que encontrou várias possibilidades de se desenvolver. Isto permite afirmar que, entre A Cor das Vogais (a primeira obra de relevo que viu editada, em 1995) e Alice no País das Maravilhas (1998), se verifica, efectivamente, um percurso evolutivo. Mas é preciso reconhecer também que a qualidade estética logo evidenciada nas primeiras ilustrações terá favorecido o aparecimento de ofertas de trabalho menos condicionadas pelos aflitivos ritmos editoriais. Parece ser o caso da segunda das obras citadas, cujas imagens, pelo seu preciosismo e riqueza de pormenores, obrigaram a tempos de maturação e de composição necessariamente dilatados, que não é fácil ver concedidos aos ilustradores portugueses pelas editoras que temos. Até porque Teresa Lima é uma inteligente leitora dos textos (o mesmo se não pode dizer de todos os ilustradores), atenta aos diferentes matizes da palavra.
Tanto os versos de Vergílio Alberto Vieira (A Cor das Vogais, Civilização, 1995) como os micro-contos de António Mota (Segredos, Desabrochar, 1996) ilustrados por Teresa Lima radicam numa realidade nacional de raízes rurais, aspecto que não poderia deixar de se traduzir no trabalho da artista. Talvez por isso, as suas composições nestes dois livros integrem quase sempre elementos de um imaginário peculiar com o qual muitos leitores portugueses se sentem familiarizados. Observe-se, por exemplo, a representação das casas de aldeia, dos animais, da natureza campestre e de certos ofícios tradicionais. Criador de ambientes por vezes oníricos, carregados – supõe-se – de memórias de infância, o traço de Teresa Lima revela um fascínio pelas composições pictóricas das crianças, a que não serão porventura alheios a sua já mencionada condição de professora e o convívio com a obra de Paul Klee e de alguns surrealistas.
As linhas e formas curvas, bem como a violação intencional de algumas regras de perspectiva provocam efeitos por vezes surpreendentes que potenciam a força poética das composições. Mas ela repousa, também, no modo como certas imagens dão a ilusão de representar o «visível» e o «não visível», entendendo este como o que apenas é possível adivinhar sob o que um primeiro olhar revela. Refiro-me à matéria subterrânea, às fundas raízes das árvores, por exemplo. Neste sentido, e não só, as imagens de Teresa Lima possuem uma dimensão pedagógica ao estimularem a criança a ultrapassar a superfície das coisas, como se cada ser ou objecto escondesse um mundo insuspeitado e por descobrir. De salientar ainda a pulsão narrativa de certas ilustrações, caracterizadas por, numa única imagem, representarem diferentes momentos da mesma história sem que o equilíbrio global se veja prejudicado – como se torna perceptível em algumas ilustrações de Segredos e de O Gigante e as Três Irmãs (Caminho, 1998), um conto tradicional recriado por Alice Vieira. A profusão de cores e tonalidades que em geral caracteriza as imagens nunca faz cedências, contudo, em matéria de gosto, nem prejudica o equilíbrio compositivo de um conjunto de forte poder apelativo. Da conjugação dos elementos apontados, da pluralidade de leituras que as imagens suscitam resulta, a meu ver, a dimensão poética das ilustrações de Teresa Lima, patente também nas que executou para livros e jogos da autoria de Graça Gonçalves, dos quais destaco Tchim, a Droga e o Benjamim e Tchim e a SIDA É assim..., ambos de 1998 (reedições da editora Gostar).
Vocacionado para a ilustração de livros para crianças entre os seis e os doze anos, o trabalho de Teresa Lima, na década de 90, evidenciava assim potencialidades que o futuro não deixou de confirmar – uma das muitas razões que terão pesado na nomeação de A Cor das Vogais para a Lista de Honra do International Board on Books for Young People (IBBY) de 1996. A esta distinção seguiu-se a selecção da artista para a exposição «Cores para o Futuro» que, com a presença de doze nomes apenas, representou a ilustração portuguesa na Feira do Livro de Frankfurt de 1997.
Finalmente, em 1999, Teresa Lima foi distinguida, pela primeira vez, com o Prémio Nacional de Ilustração de 1998. Este prémio fora criado dois anos antes, pela Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil (Secção Portuguesa do IBBY) e pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, a fim de estimular e promover a ilustração de qualidade publicada em livros infantis e juvenis portugueses, chamando também a atenção para o papel desempenhado por esta modalidade de expressão artística na formação do gosto estético de crianças e jovens e na motivação para a leitura. Sendo no momento o único prémio português – e dirigido a portugueses – a distinguir esta forma de expressão estética singular (e até certo ponto indissociável da escrita literária com a qual deverá constituir um todo), o Prémio Nacional de Ilustração tem despertado o interesse de muitos artistas e editores, manifesto no elevado número de obras apresentadas a concurso nos últimos anos.
O livro premiado em 1999 foi a já citada versão de Alice no País das Maravilhas, publicada pela Civilização Editora, obra que veio demonstrar a vocação de Teresa Lima para uma nova área: a da ilustração de clássicos da literatura para crianças, domínio que constitui, em regra, uma prova de fogo para a maioria dos grandes ilustradores. Não discorrerei aqui sobre um texto sobejamente conhecido e que se impôs como obra-prima da literatura de fantasia da época vitoriana e do nonsense de raiz anglo-saxónica. Direi apenas que Teresa Lima ilustrou esta narrativa de forma superior, dando sinais de consolidação de um estilo inconfundível. Nas páginas de grande formato, o seu traço expande-se na composição dos cenários, deixando perceber diversas influências que o enobrecem mas não chegam a condicionar em excesso o produto final. Prevalece, com efeito, o estilo pessoal da artista, quer no desenho quer no modo como trabalha o pormenor, trata a cor e os contrastes, confere profundidade ao cenário e aprofunda certas dimensões do fantástico carrolliano, sem contudo perder de vista a necessária articulação do texto literário com a imagem na produção de significado da narrativa, além de deixar entrever relações interartísticas. Este é um dos aspectos salientados por João Paiva Boléo quando escreve: «Pela sua qualidade e originalidade, reforçada pelos pormenores repetidos em sombra ao longo do texto, [as ilustrações] tornam este livro um objecto maravilhoso. Sem se sentir constrangida pelas paradigmáticas ilustrações de Tenniel, Teresa Lima optou por ilustrações/quadros que abrem/resumem cada capítulo, com o extraordinário mérito de ser fiel ao imaginário de Lewis Carroll e ter uma ressonância estética de fortes raízes portuguesas, passando por Mário Botas, os azulejos, Paula Rêgo» 1.
Pelo que fica dito, parece claro que Teresa Lima encontrou um caminho seu que percorre agora com segurança, em especial nos domínios do conto, da poesia e ainda dos clássicos da literatura para a infância. Nas suas imagens, a tradição fecunda um registo pessoal. Sem se alhear das suas raízes culturais, esse estilo confere substância a um percurso de ilustração moderno e que sabe como desafiar o imaginário infantil, enriquecendo-o com a poesia que emana de uma singular conjugação de formas e de cores com um imaginário muito próprio.
Nota
1 João P. Boléo. «Contos ilustrados», Expresso (Cartaz), 21/8/1999, p. 23.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)