terça-feira, 28 de dezembro de 2021

João Paulo Cotrim (1965-2021)



Conheci-o talvez em 1998 ou 99, na Bedeteca de Lisboa. Convidara-me, por intermédio de Dora Batalim, para fazer uma sessão, creio que para professores e mediadores da leitura, em torno do meu livro infanto-juvenil Versos com Reversos (Editorial Caminho).

Já costumava ler os seus artigos e recensões, mas de imediato reconheci nele uma personalidade afável, gentil e principalmente apaixonada por aquilo que era o seu projecto de então: precisamente a Bedeteca, de que foi a ‘alma mater’. 

De longe fui acompanhando o seu percurso. Lia muitas vezes, sempre com proveito, os seus muitos textos histórico-críticos sobre banda desenhada (em Portugal, os estudos sobre BD e os próprios criadores desta área ficam a dever-lhe muito). Soube-o, mais tarde, integrado na equipa desse belíssimo projecto da Fundação Calouste Gulbenkian que deu pelo nome de Casa da Leitura, equipa da qual outras amigas faziam parte, como Cristina Taquelim, Sara Reis da Silva e Ana Margarida Ramos. Um projecto a que cheguei a dar também alguma colaboração. 

Mas João Paulo Cotrim era ainda escritor: quer como argumentista e criador de textos para álbuns de BD quer como autor de obras de qualidade (e não apenas livros infanto-juvenis). Os seus álbuns A Cor Instável(2003, com Alain Corbel), O Homem Bestial (2003, com Maria João Worm), História de Um Segredo (2003, com André Letria) e Viagem no Branco (2004, com Miguel Rocha), todos da Afrontamento, além da sua qualidade estética intrínseca, são obras de algum pioneirismo ainda, no domínio do picture storybookportuguês. Muitos outros títulos se seguiram. Além de guionista para filmes de animação, Cotrim foi também autor de crónicas, poeta e organizador de antologias. É de salientar que deixa uma obra de dimensão considerável produzida durante uma curta vida. 

O seu último grande projecto (pois era um homem de projectos – pensava-os e realizava-os) foi a editora Abysmo, a que conferiu identidade própria, juntamente com os autores que quis acolher no seu catálogo (poetas, escritores de ficções e ensaio, ilustradores, designers gráficos…) e que, sem dúvida, lhe imprimem singularidade. Recordo-me de, em 2014 talvez, ter convidado a ilustradora Ana Biscaia para, juntamente comigo, apresentarmos o nosso livro Que Luz Estarias a Ler? (Xerefé Edições), ali, à Rua da Horta Seca, em Lisboa, na bonita galeria da Abysmo. Assim o fizemos com a preciosa cumplicidade do Bruno Monteiro que fez uma introdução ao nosso trabalho.

A Abysmo foi, é, sem dúvida, um projecto editorial original e de qualidade. Graças à criatividade e energia de João Paulo. Que vai fazer muita falta à nossa cena cultural, não tenhamos dúvidas. (Ainda em Novembro de 2021, editou por exemplo Micróbios, de Henrique Manuel Bento Fialho, que, pelo humor e sentido crítico e pelas suas características ideotemáticas e formais, no domínio do conto breve e do micro-conto, considero ser um dos mais interessantes livros portugueses de 2021.)

Continuemos a ler as criações literárias e editoriais de João Paulo Cotrim e saibamos dar o devido uso aos estudos que nos deixa, em especial no campo da BD.

 

João Pedro Mésseder