segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Jaqueline Conte: entre narrativa e poesia, uma nova escritora, uma escritora nova


Tivesse eu de escrever um artigo sobre a questão da morte no livro infanto-juvenil actual, em língua portuguesa, e ao corpus lá iria parar, com destaque, esta novela da escritora brasileira Jaqueline Conte: Os Jornais de Geraldine (Curitiba: Arte & Letra, 2019). O título joga desde logo com certa polissemia, quer porque de facto são referidos jornais na obra quer porque a heroína, Geraldine, pré-adolescente, redige um quase-diário (journal, em Francês) heterodoxo, pois é feito de pequenas ficções que emergem de nomes… encontrados. Mas o meu suposto artigo viria com esta advertência: há modos e modos de tratar o tema. E a forma como Jaqueline pegou na morte tem que se lhe diga: é sensível, engenhosa, divertida até, e revela desde logo a sua imaginação e o seu talento como criadora de ficções para os mais novos. Senão vejamos.

Não querendo desvelar o enredo, recorro pelo menos ao peritexto da contracapa com que o potencial leitor pode, ele próprio, vir a ser atraído para a leitura: «Geraldine tem um hábito incomum: em seu caderninho azul, coleciona nomes que considera diferentes, selecionados do obituário do jornal. || O motivo? Quer inventar histórias para esses nomes. Só não sabe como. Até que o pai lhe propõe um projeto irresistível (e supersecreto!).» 

A estrutura combina assim um narrador não participante que conta a história de outros Geraldine, o pai, a tia, a empregada… – (heterodiegético, portanto) com um narrador criado por Geraldine-escritora e que conta histórias de personagens que são crismados com os tais nomes estranhos (que bonito tributo – apetece dizer – à inventividade ficcional/literária).

Funcionário administrativo de cemitério, o pai é o primeiro leitor das páginas de Geraldine (aliás estimulou a filha a compô-las). Para ele escreve a menina ao longo de várias noites (como que um eco d’As Mil e Uma Noites?), enfiando cada novo texto por baixo da porta do quarto do seu simpático progenitor.

As histórias inventadas por Geraldine são em geral estranhas e divertidas e captam a curiosidade do leitor, desde logo devido aos próprios nomes dos protagonistas: Astolfo, Dona Ambrosia, Pulquéria…. Toda a novela assenta na alternância de vozes (o narrador heterodiegético e o narrador das histórias-retratos da menina), despertando, estou quase certo, o interesse dos potenciais destinatários. Até porque as personagens são verosímeis, credíveis, a sua «humanidade» enternece-nos, e porque o conjunto constitui, ao mesmo tempo, uma homenagem à escrita, à arte de inventar e contar histórias e ao afecto e cumplicidade entre filha e pai. Além de configurar, como já se percebeu, uma paradoxal e terna exaltação da vida.

A prosa de Jaqueline Conte marcada pela simplicidade e pela fluidez, mas estilisticamente apurada e muito atenta às pequenas vibrações expressivas do Português do Brasil (em especial no plano das opções lexicais), possui ritmo oralizante, mas não faz concessões à facilidade. 

É um prazer ler esta ficção, além do mais bem paginada e devidamente editada, com capa, ilustrações e projecto gráfico felizes de Frede Tizzot (impressão em risografia e encadernação manual). Graficamente, trata-se duma elegante edição, de capa dura.

Do mesmo ano, 2019, é Passarinho às Oito e Pouco (Curitiba: Insight Editora), um conto quase todo em diálogo, belamente ilustrado em quadricromia por Adilson Farias, bom desenhador de pássaros e figuras humanas dentro do seu registo, que alguns elementos possui de certa banda desenhada, e que é susceptível, estou seguro, de prender a atenção dos mais novos. 

Inspirado num episódio real sobre um pássaro que parecia querer entrar numa casa e que batia no vidro da janela, episódio esse que inspirou a escrita dalguns poemas que integram o corpo do texto narrativo, Passarinho às Oito e Pouco é um conto de desarmante simplicidade-e-poesia. Resumi-lo ou comentá-lo neste espaço seria macular o seu encanto, até porque tudo se joga num diálogo vivo, muito terno e pleno de sensibilidade, entre uma mãe-poetisa e o seu filho também poeta. «Esse passarinho / Me poema / Todo dia / Às oito e pouco da manhã» (p. 15) – escreve a mãe numa das suas composições poéticas. 

Não conheço muitas histórias profundas mas de aparência simples sobre o mistério da poesia, sobre as palavras e o seu enigma, escritas por quem detenha, efectivamente algum saber sobre tal mistério. Convidando também a uma certa reflexão metapo(i)ética, Passarinho às Oito e Pouco guarda um pouco dessa profundidade, além de estimular à própria escrita criativa. E isto sem abrir mão duma questão sempre imperativa em Jaqueline Conte, que é a da afectividade e da cumplicidade familiares.

Complementam esta breve mas intensa ficção poética uma informação sobre a verdadeira história do passarinho (incluindo foto), um saí-azul; um curto esclarecimento sobre três termos mais «difíceis» do texto; uma versão inglesa do conto em letra mais pequena; e ainda um código QR que permite navegar por conteúdos extra do livro1. Mas tudo se encontra organizado e formatado com bom gosto e sem excessos didactizantes. 

Já no livro de vinte e oito poemas Na Casa Amarela do Vovô, Joaninha Come Jujubas(Curitiba: Mercado Livros, 2017), para crianças mais pequenas (há mesmo poemas que podem ser introduzidos no pré-escolar), Jaqueline Conte revela-se-nos poetisa. E uma poetisa para a infância de eleição, direi. A actividade lúdica da criança, a figura humana, o bicho, os próprios poetas e a poesia bem como o mistério/fascínio das palavras são alguns dos veios temáticos do poemário – em que cada composição é seguida de uma página em branco onde a criança pode desenhar, fazer colagem, grafismos, escrever… E porque «Poema / É brincadeira de palavras / Que gostam / De se divertir», como se lê no «Poema brincante» (p. 30), não se estranhará que a vertente lúdica da poesia, a materialidade do signo, a festa da língua sejam aqui as pedras de toque. Mas também o é o modo sensível e arguto como o olhar do sujeito poético capta idiossincrasias e encantos dos seres, das coisas, dos lugares. As ilustrações simples mas sugestivas (traço a negro sobre grande superfície colorida) de Cassiano Tabalipa (que também assina capa e projecto gráfico) dialogam bem com as palavras, evidenciando uma preocupação: não as afogar na imagem, mas antes valorizar o texto literário enquanto objecto verbal artístico. 

Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Jorge Amado, Manoel de Barros, José Paulo Paes e sobretudo Ziraldo, Lygia Bojunga, Ruth Rocha, Ana Maria Machado são apenas alguns dos nomes que me vêm à memória quando penso na grande literatura brasileira para a infância e a juventude. O estro de Jaqueline Conte possui já alguma coisa desta nobre linhagem, da sua intemporal frescura criativa e da sua inventividade linguística. Apetece dizer, após a leitura destes três livros: Jaqueline, uma nova escritora que é uma escritora nova.

 

Nota

1 Escreve Jaqueline Conte no seu Facebook, em Dezembro de 2021: «Para quem não sabe, o livro "Passarinho às Oito e Poucotem um site, acessível por meio do QR Code que está impresso ao final do livro. Lá há muito conteúdo ligado à literatura, artes, música e ciências, além de sugestões de atividades para mediadores de leitura. Também por ali convido os leitores a pensar no poema que o personagem principal teria feito. E vira e mexe recebo os poemas feitos pelas crianças.»

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto