Livro fechado
Era uma vez um livro. Um livro fechado. Tristemente fechado. Irremediavelmente fechado.
Nunca ninguém o abrira, nem sequer para ler as primeiras linhas da primeira página das muitas que o livro tinha para oferecer.
Quem o comprara trouxera-o para casa e, provavelmente insensível ao que o livro valia, ao que o livro continha, enfiara-o numa prateleira, ao lado de muitos outros.
Ali estava. Ali ficou.
Um dia, mais não podendo, queixou-se:
– Ninguém me leu. Ninguém me liga.
Ao lado, um colega disse:
– Desconfio que, nesta estante, haverá muitos outros como tu.
– É o teu caso? – perguntou, ansiosamente, o livro que nunca tinha sido aberto.
– Por sinal, não – esclareceu o colega, um respeitável calhamaço.
– Estou todo sublinhado. Fui lido e relido. Sou um livro de estudo.
– Quem me dera essa sorte – disse outro livro ao lado, a entrar na conversa. – Por mim só me passaram os olhos, página sim, página não... Mas, enfim, já prestei para alguma coisa.
– Eu também – falou, perto deles, um livrinho estreito. – Durante muito tempo, servi de calço a uma mesa que tinha um pé mais curto.
– Isso não é trabalho para livro – estranhou o calhamaço.
– À falta de outro... – conformou-se o livro estreitinho.
Escutando os seus companheiros de estante, o livro que nunca fora aberto sentiu uma secreta inveja. Ao menos, tinham para contar, ao passo que ele...
Suspirou.
Não chegou ao fim do suspiro, porque duas mãos o foram buscar ao aperto da prateleira. As mãos pegaram nele e poisaram-no sobre os joelhos.
– Tem bonecos esse livro? – perguntou a voz de uma menina, debruçada sobre o livro, ainda por abrir.
– Se tem! Muitos bonecos, muitas histórias que eu vou ler-te – disse uma voz mais grave, a quem pertenciam as mãos que escolheram o livro da estante.
Começou a folheá-lo e, enquanto lhe alisava as primeiras páginas, foi dizendo:
– Este livro tem uma história. Comprei-o no dia em que tu nasceste. Guardei-o para ti, até hoje. É um livro muito especial.
– Lê – exigiu a voz da menina.
E o pai da menina leu. E o livro aberto deixou que o lessem, de ponta a ponta.
Às vezes, vale a pena esperar.
António Torrado, Livro Fechado (cartaz, design António Modesto), Secção Portuguesa do IBBY | IPLB, Lisboa: 1997
António Torrado, figura maior da literatura para crianças e jovens (e não só)
Foi no já longínquo ano de 1997 que António Torrado publicou este belo conto breve num cartaz alusivo ao 2 de Abril.
Vinte e quatro anos decorridos, aqui temos o prazer de o recordar, por ocasião do Dia Internacional do Livro Infantil de 2021 e como forma de homenagem ao seu autor, um dos nomes cimeiros da nossa literatura para a infância. Torrado é como que um legítimo herdeiro – ousemos dizê-lo – da riquíssima tradição dos contos de Hans Christian Andersen (1805-1875), o patrono do 2 de Abril (a que prestou tributo em diversas obras), e da nobreza do “contador de histórias” de raiz popular tradicional. Legou-nos aliás um sem número de adaptações/recriações de narrativas populares portuguesas que recontou como muito poucos autores, tendo sabido dar nova e vibrante roupagem a toda a graça, vivacidade e fantasia desses textos imemoriais.
Nascido em Lisboa, em 1939, é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e tem tido uma actividade profissional diversificada, dirigida, em grande parte, ao público infantil e juvenil: dramaturgo, poeta, contista, novelista, editor (Plátano, Editorial Comunicação…), produtor, guionista e argumentista, pedagogo e professor. Foi coordenador do Curso Anual de Expressão Poética e Narrativa no Centro de Arte Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian; professor responsável pela disciplina de Escrita Dramática na Escola Superior de Teatro e Cinema e dramaturgo residente na Companhia de Teatro Comuna, em Lisboa, e noutras companhias portuguesas.
A sua produção literária para crianças tem acumulado prémios e distinções públicas. Destaca-se o Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura Infantil para o melhor texto do biénio de 1978-79 (Como se faz cor-de-laranja); a recomendação extra-concurso, pelo júri do Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura Infantil de 1984-85, da totalidade da colecção "Conto Contigo" (dezasseis títulos de adaptações/recriações de contos populares tradicionais); o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças, pelo conjunto da obra, em 1988; as inclusões na Lista de Honra do International Board on Books for Young People, em 1974, com O Veado Florido e, em 1998, com As Estrelas.
Torrado recebeu ainda outros prémios literários e foi, por mais que uma vez, nomeado candidato português ao Prémio Hans Christian Andersen, sendo a sua escrita marcada pela diversidade genológica, pelo humor e pela graça, pela extrema vivacidade do contar (que aproxima sempre o texto escrito da narração oral), por um domínio seguríssimo dos códigos técnico-narrativo, retórico e estilístico e por uma orientação ideotemática em que a crítica a comportamentos sociais se compagina com o interesse por outras culturas, com a valorização da liberdade, da justiça, do direito à livre expressão e com o respeito (e um encantamento muito especial) pela condição infantil, cuja natureza o autor bem conhece.
A terminar, acrescente-se que poderíamos prolongar esta nota e escrever outro trecho da mesma extensão sobre a também impressionante obra “para adultos” de António Torrado – poeta de assinalável mérito, de algum modo aproximável da geração de Poesia’61; mestre incontestável do conto curto e do micro-conto; e um dos mais notáveis dramaturgos portugueses da actualidade; além de, por vezes, crítico literário arguto, ensaísta também no campo da pedagogia, e experimentado argumentista de cinema e televisão.
Por todas estas razões, é um enorme regozijo poder associar, uma vez mais, o nome de António Torrado à celebração do Dia Internacional do Livro Infantil.
BIBLIOGRAFIA SELECTIVA
O Veado Florido, Lisboa, Editorial O Século, 1972; 5.ª ed., Porto, Civilização, 1994; Lista de Honra do IBBY 1974.
Como Se Faz Cor-de-laranja, Porto, ASA, 1979; 5.ª ed., Porto, ASA, 1993; Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura Infantil para o melhor texto do biénio de 1978/79.
O Pajem Não Se Cala, Lisboa, Livros Horizonte, 1983; 2.ª ed., Porto, Civilização,1992; também publicado em galego, por Ir Indo Edicións.
O Mercador de Coisa Nenhuma, Lisboa, Livros Horizonte, 1983; 2.ª ed. revista e aumentada, Porto, Civilização, 1994; Lista de obras de literatura para crianças "The White Ravens" da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique em 1995.
O Elefante Não Entra na Jogada, Porto, ASA, 1985; 3.ª ed., Porto, ASA, 1990.
Vamos Contar Um Segredo, Porto, Civilização, 1993; também publicado em basco, por Erein Argitaletxea; em castelhano, por Editorial La Calesa; em catalão, por Pirene Editorial; em galego, por Ir Indo Edicións e em valenciano, por Tándem Edicions.
As Estrelas, Porto, Civilização, 1996, Lista de Honra do IBBY 1998.
Vassourinha, Porto, Campo das Letras, 2001.
À Esquina da Rima Buzina, Lisboa: Caminho, 2007.
Zaca Zaca, Lisboa, Caminho, 2008.
O Homem sem Sombra, Lisboa: Caminho, 2011.
Fábulas Fabulosas, Alfragide, Leya / ASA, 2017 (1.ª ed., 2012)
Quarenta e Dois Mais Vinte e Um e Outras Histórias, Alfragide, Leya / ASA, 2020.
José António Gomes
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto