Era o Verão de 2019. E eram poemas o que lia. Poemas vivos sobre o mar. (O que é o mar? Uma imensidão.) Ler os poemas. Começar a jogar com eles. O que aconteceu neste livro coincidiu com o Verão de 2019. Dias solares, de recolhimento, veraneantes, de água e sal e sol. Eu estava na Figueira da Foz e havia um livro para fazer. Um livro chamado Poucas Letras, Tanto Mar. Peguei no carro e fui prantar-me em frente ao mar. A olhar o mar. A desenhar o mar. A fotografar o mar. Mas não só. Também as rochas, os paus, as pedras, a areia, as gaivotas voadoras. Aconteceram cadernos com desenhos a apontamentos de mar. Estava perto do mar e essa curta distância foi primordial, importante. Aguarelas. Azul-turquesa, areia, amarelo, verde. As cores do mar. A matéria do mar. O desenho nos cadernos, a lápis, experiências primeiras de polvos atrás do almoço. Peixes sorridentes. Tentativas primeiras de desenhar o espírito (ou a alma?) dos poemas. Depois a leitura, sempre a leitura e sugestão oferecida pela poesia. Cor, temperatura. Imagens surgindo dentro do corpo e do coração, memórias de mar inesquecíveis transformadas em desenho. O mar, presença fulcral, tema transversal a todos os poemas. Uns breves, outros longos, todos eles a contarem como descrevem as gaivotas o seu voo rasante, como se enruga a maré vaza, como há frio que afinal ferve, bem querer entre areia e mar, barcos que podem ser sonhados. Ao ilustrar estes poemas pensei num ensaio visual sobre o mar. Pensei em aprender a desenhar o mar. Na pesquisa que fiz encontrei livros japoneses chamados hamonshu, com desenhos de ondas. Ali estava o mar. É preciso aprender com os japoneses (tive esta certeza). Olhar para os seus desenhos e voltar a olhar para o mar. Pensar na sobreposição de um sobre o outro e no acerto que contém. As ilustrações são aguarelas, pinturas, desenhos feitos a carvão, a tinta da china, são pequenos objectos recortados e pintados, são colagens. Algumas saíram directas dos cadernos de esboços, por exemplo, o menino junto ao farol, no poema faroleira é um desenho de caderno. Algumas ilustrações cabem e encaixam no poema, ou seja, foram feitas sobre ele e para ele, outras não, são desenhos realizados a partir do espírito e do tema do poema. São desenhos livres. Algumas ilustrações são pequenas peças de papel recortadas. Havia cores, uniformizando tudo. No mar, o corpo vive sensações difíceis de descrever. Somos parte do mar, somos naturalmente humanos, estamos dentro dele. É das mais belas e das melhores experiências da vida. O corpo dentro do mar. O sol dentro dos olhos. As estrelas que moram dentro das ondas ferventes. O som do mar. O mar traz-nos coisas. Memórias. Pedras. Algas. Paus, conchas, poças. Limos, pássaros, crianças. Desenhos na areia e castelos, construções. Praia! O mar é uma imensidão, solta sonhos, é espaço de trabalho, fonte de vida, de rendimento, estrada para quem nele viaja, amigo para quem nele busca salvação. Na capa do livro existe uma menina numa praia deserta, praia que nunca vi, mas que adivinhei quando assim ilustrei. “Quando eu morrer voltarei para buscar / os instantes que não vivi junto do mar” (Sophia). O meu propósito foi de ensaiar. Ensaiar visualmente sobre o mar. Experimentar o gesto, saber do seu desenho, fazer cópias, pensar na expressividade gráfica de uma onda, de várias ondas, saber como se desenha a rebentação e o lençol de espuma, os brilhos de estrelas que permanecem na areia depois do recuo do mar. Lembro-me de uma frase de Vitorino Nemésio. “A melhor coisa que a Figueira tem é o Doutor Oceano.” Sei, de saber de experiência feita, que este Doutor ajuda a curar feridas abertas (visíveis e invisíveis). O meu propósito foi ilustrar a frescura do mar, ilustrar o que sente o corpo. A luz do sol calor. Estender a toalha e não fazer mais nada, por vezes desenhar o que via à minha volta. Regressar a casa cheia de sal e de sol, em direcção ao estirador para ilustrar este livro.
Coimbra, 20 de Dezembro de 2020 (Domingo)
Ana Biscaia
A obra Poucas Letras, Tanto Mar (Xerefé, 2019), com texto de João Pedro Mésseder e desenhos de Ana Biscaia, pode ser adquirida escrevendo para aqui ou para aqui.