Constança Leonoreta da Graça de Azambuja Leitão (que adoptaria o “nome de guerra” e de plume Leonoreta Leitão) nasceu em Leiria, em 1929, num meio social privilegiado. Seria seu padrinho o poeta Afonso Lopes Vieira.
Licenciada em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1957, fez estágio no 8.º Grupo do Ensino Técnico e Exame de Estado em 1959-61. Foi professora do Ensino Técnico e do Ensino Preparatório (actual 2.º ciclo do Ensino Básico), orientadora de estágio de Português e desempenhou funções pedagógicas e inspectivas na Direcção-Geral do Ensino Secundário. Desde sempre empenhada na dignificação da profissão docente, fez parte dos “grupos de estudo” organizados por professores antes de 1974 e que constituíram o embrião dos sindicatos de professores, após 25 de Abril de 1974. Sobre o seu rico itinerário nos campos pedagógico e político, vale a pena ler a entrada que Helena Pato lhe dedica em Antifascistas da Resistência, no Facebook.
Enquanto poeta, Leonoreta Leitão – que publicou os seus primeiros poemas em 1947, pela mão de David Mourão-Ferreira – colaborou em revistas que fizeram história na vida cultural e literária portuguesa (Távola Redonda, Seara Nova, Jornal de Letras e Artes, Colóquio / Letras) e publicou o livro de poesia Amanhã É Domingo (1965), recenseado por nomes como João Gaspar Simões, Liberto Cruz, Álvaro Salema, Fausto Lopo de Carvalho e José Blanc de Portugal. Trata-se de uma escrita cujo húmus biográfico é a relação amorosa mantida com o escritor Urbano Tavares Rodrigues. Caracterizado por um lirismo que nos toca pelo vivido em que radica e não só, mas que nunca é expansivo em excesso, exaltando a aventura amorosa e a juventude, mas dando voz também à coita de amor, Amanhã É Domingo foi publicado na prestigiada colecção Poesia e Verdade, da Guimarães Editores, e contém poemas tão depurados e atentos ao estrato fónico-rítmico como este:
Afago que perpassa
em gesto brando de ave,
breve, breve.
Vive minha presença,
leve roçar de asa
que no teu mundo passa.
Imagem recordada,
constante, natural,
suave, suave.
Que eu chore tua ausência,
feliz, recompensada
de me saber total. (p. 23)
De referir que, em 1965, Leonoreta Leitão não terá recebido o Prémio de Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores outorgado ao original de Amanhã É Domingo, por esta distinção ter sido, nesse ano, extinta, uma vez que a SPE (Sociedade Portuguesa de Escritores) fora assaltada pela PIDE na noite de 21 de Maio de 1965, num episódio bem conhecido, na sequência da atribuição do Grande Prémio da Novelística a Luuanda, de Luandino Vieira.
Leonoreta foi membro dos corpos gerentes da Sociedade da Língua Portuguesa (1983-1998), dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Escritores (1980-1988 e 1990-1994) e várias vezes eleita em órgãos autárquicos, actividade a que não é alheio o seu forte sentido de intervenção cívica, antes e depois do 25 de Abril. Registe-se, de passagem, a publicação de «As minhas vivências com a PIDE» e de «O insustentável azul violáceo» na Antologia de Memórias e Vivências de Paixão (Colibri, 2020) organizada recentemente por Fernão Mão de Ferro.
Mas a obra autobiográfica em que a autora mais aprofundadamente evoca as suas origens e o seu percurso académico e profissional, a acção cívica e a intervenção pedagógico-cultural que levou a cabo, bem como as suas diversas incursões literárias, é Era Uma Vez Uma Boina – Memórias de uma Professora do Estado Novo à Democracia (a boina guevarista foi sempre um dos adereços icónicos da autora), editado pela Colibri em 2015. Trata-se de um livro merecedor de leitura e com elementos factuais interessantes, não obstante algum desequilíbrio na organização de um texto que, ao aflorar a relação eu/outro(s), teria ganhado em expandir os retratos humanos de diversas figuras com quem a autora/narradora/protagonista afortunadamente se deu ou privou, diluindo assim um pouco a presença do eu. Súmula de uma vida, tem ainda a vantagem de incluir alguns poemas e outros textos que permaneceram inéditos ou que se encontram dispersos em publicações periódicas.
Na área dos livros escolares e para-escolares, Leonoreta Leitão publicou diversas obras dignas de nota, pela sua qualidade: Os Lusíadas (explicação, adaptação e versos escolhidos para crianças – 1971); Barca Bela (selecção e organização em colaboração com Júlio Martins, para o Ensino Preparatório – 1972); Caminhos (selecção e organização em colaboração com Aldónio Gomes e Alice Gomes – nome importante da literatura portuguesa para crianças e irmã de Soeiro Pereira Gomes –, para o Ensino Primário – 1973); e ainda Recado (textos escolhidos para os Cursos Supletivos e para o Ciclo Preparatório – 1979), este último editado pela Plátano e um exemplo bem ilustrativo dos novos rumos que a educação linguística e literária tomou após a Revolução de Abril, tanto em matéria de renovação do corpus textual como no plano visual e gráfico.
A intervenção de Leonoreta Leitão no âmbito da literatura para a infância e a juventude decorreu, em parte, da sua experiência docente e centrou-se, em primeiro lugar, no trabalho da Secção Portuguesa do IBBY (International Board on Books for Young People), de que foi vice-presidente de 1980 a 1982, além de braço direito da escritora Lília da Fonseca – esta, por seu lado, foi presidente e destacou-se tanto pela sua multifacetada escrita (ficção para adultos além de contos, textos dramáticos e poesia para crianças) como pelo seu assinalável trabalho em prol da dignificação e reconhecimento do livro infantil. Leonoreta produziu e apresentou programas de televisão (vinte e dois programas – “A grande aventura” – na Rádio Televisão Portuguesa, em 1972; colaboração no programa da RTP “Uma história ao fim do dia”, em 1986) e organizou acções de promoção da leitura e de animação de bibliotecas infantis, além de ter co-organizado colóquios e produzido recensões críticas e comunicações sobre literatura para crianças. Elaborou e leccionou programas de literatura para crianças e jovens na Escola de Formação de Educadores Paulo VI, entre 1969 e 1975, e na Escola Superior de Educação Almeida Garrett, entre 1992 e 1994. Colaborou ainda no Dicionário no Feminino (sécs. XIX-XX) (2005), dirigido por Zília Osório de Castro e João Esteves.
Publicou um valioso trabalho, As Crianças Entrevistam 16 Escritores, em 1972, por cujas páginas desfilam alguns dos mais importantes nomes da nossa literatura para a infância, em depoimentos dignos de leitura, colhidos por crianças, que então eram alunas da autora na Escola Preparatória Francisco Arruda, no âmbito das actividades do Clube de Português. Testemunhos que espelham um meritório trabalho educativo, e que deverão ser lidos pelos estudiosos e críticos de hoje. Um reencontro com Alice Gomes, António Torrado, Adolfo Simões Müller, Esther de Lemos, Lília da Fonseca, Maria Alberta Menéres, Manuel Ferreira, Mário Castrim, Matilde Rosa Araújo, Olavo d’Eça Leal, Ricardo Alberty, Sophia de Mello Breyner Andresen e outros.
Em 2007, viu editado Era Uma Vez Um Rei que Teve um Sonho – Os Lusíadas contado às crianças (Dinalivro), conseguida adaptação em prosa da obra de Luís de Camões, que, com ilustrações muito sugestivas (colagem, pintura, composição digital), de José Fragateiro, teve segunda edição em 2010 e foi publicada também no Brasil pela editora Martins Fontes.
Leonoreta Leitão teve assim, desde os anos sessenta, uma voz activa na dinamização desta área da criação literária nos meios pedagógicos e nas discussões sobre a sua importância estética e social. Além de ter conhecido, na juventude, Sebastião da Gama, David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Carlos Aboim Inglês e outras figuras, e de ter convivido de perto com muitos autores da nossa literatura para crianças e jovens, foi amiga de Lília da Fonseca e de Natércia Rocha, co-organizou, com Matilde Rosa Araújo, o colóquio de Literatura Infantil, Pedagogia e Psicologia na Escola do Magistério Primário (1975) e representou a Associação Portuguesa de Escritores no júri dos Prémios Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças, em 1984. Conviria, pois, escutar mais e mais vezes as suas preciosas memórias.
Além de traçar este breve percurso biobibliográfico, interessa-me ainda sublinhar a acção de Leonoreta Leitão primeiro como activista estudantil, ainda na faculdade, e mais tarde como democrata e antifascista, a quem, em 1996, foi atribuída a medalha de mérito municipal de Alcanena. Interessa-me o seu percurso cívico após o 25 de Abril, a generosidade com que sempre soube estar do lado certo, que é o lado do povo, e a generosidade com que serviu a democracia através dos cargos que exerceu, designadamente como autarca, numa freguesia da cidade de Lisboa. Interessa-me, em suma, a pessoa que foi e é Leonoreta Leitão. A mulher e a cidadã íntegra, lutadora e apaixonada pela vida, pela educação e pelos livros.
Bibliografia de Leonoreta Leitão
Obra literária
«A Carta» (conto), O Século, Página Literária, 1970 (incluído em Leitão, Leonoreta, Era Uma Vez Uma Boina – Memórias de uma Professora do Estado Novo à Democracia, Lisboa: Colibri, 2015, pp. 45-50).
Amanhã é domingo (poesia), Lisboa: Guimarães Editores, 1965, colecção Poesia e Verdade.
Era Uma Vez Um Rei que Teve Um Sonho – Os Lusíadas contado às crianças (reconto/adaptação em prosa), Lisboa: Dinalivro, 2007; 2.ª ed., 2010 (ilustrações de José Fragateiro).
Era Uma Vez Uma Boina – Memórias de uma professora do Estado Novo à Democracia (memórias), Lisboa: 2015.
«As minhas vivências com a PIDE», in Mão de Ferro, Fernão (coord.), Antologia de Memórias e Vivências de Paixão, Lisboa: Colibri, 2020.
«O insustentável azul violáceo» in Mão de Ferro, Fernão (coord.), Antologia de Memórias e Vivências de Paixão, Lisboa: Colibri, 2020.
Textos dispersos em diversas publicações periódicas (poemas, contos, recensões, testemunhos, etc.)
Outros trabalhos
As crianças entrevistam 16 Escritores, Lisboa: Escola Preparatória Francisco Arruda. 1972.
Selecção de obras para o catálogo Autores Portugueses de Literatura Infantil, IBBY, Bruxelas: 1982
“Situação e perspectiva da literatura infanto-juvenil em Portugal” – comunicação ao II Congresso dos Escritores Portugueses (em co-autoria com Idalécia Cabrita), 1982.
“Para uma abordagem da realidade social na literatura para crianças” – comunicação no Encontro de Literatura para Crianças da Fundação Gulbenkian, 1982.
“Literatura Infanto-Juvenil” – balanço da produção de 1987, Colóquio-Letras, n.º 101, Lisboa: 1988.
“Um olhar sobre a obra de Natércia Rocha”, Boletim do CRILIJ – Centro de Recursos e Investigação sobre Literatura para a Infância e Juventude, n.º 0, Porto: 2000.
Livros escolares
Os Lusíadas – explicação, adaptação, versos escolhidos para crianças. Lisboa: Edição da Escola Preparatória de Francisco Arruda, 1971.
Barca Bela: primeira viagem – contos, fábulas, narrativas, lendas, teatro – antologia para o Ciclo Preparatório, Lisboa: Didáctica, 1972 (co-selecção e co-organização com Júlio Martins).
Caminhos – 3.ª classe do Ensino Primário, 1973 (co-selecção e co-organização com Aldónio Gomes e Alice Gomes).
Recado: textos escolhidos de língua portuguesa para os cursos supletivos e ciclo preparatório. Lisboa: Plátano, 1979.
Recado: algumas sugestões de trabalho. Lisboa: Plátano, 1979.
Sobre Leonoreta Leitão
Gomes, José António, «Leonoreta Leitão», em Quem É Quem na Literatura para a Infância e a Juventude em Portugal, Base de Dados sobre Autores da DGLAB Autores (dglab.gov.pt) , online, 2-2012.
Pato, Helena, «Leonoreta Leitão», em Antifascistas da Resistência, Facebook, 9-8-2020.
José António Gomes
IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais) da ESE do Porto