quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Lobinho, de José António Franco


Gostamos de lobos. E não é de agora, nem apenas depois de conhecer os incríveis lobos que povoam as inúmeras (infinitas?) versões paródicas do Capuchinho Vermelho, por exemplo. Gostamos de lobos, talvez desde o dia em que soubemos que houve tempos e houve países da Europa que conseguiram extingui-los por inteiro das suas florestas. Sabemos, por exemplo, que o lobo ibérico é uma espécie em vias de extinção. 

Alvo de mitos – Rómulo e Remo foram alimentados por uma loba e talvez fosse importante contar também esta história às crianças e a muitos adultos, naturalmente – e de perseguições, o lobo não deixa de ser um animal que suscita controvérsia junto dos humanos, que nunca conseguiram domesticá-lo.

O Lobinho (Lápis de Memórias, 2016) que José António Franco nos dá a conhecer neste livro singelo fica na memória de pequenos e/ou grandes leitores pelo perigo que corre e pela gratidão que acaba por suscitar na sua alcateia. Animais-animais, mas também animais marcados por uma espessura que toca o humano, nesta narrativa breve, estes são representantes de valores como a união, a solidariedade ou a entreajuda e a bondade, distinguindo, enfim, as personagens humanas e os animais. Plasmam-se significativamente na figura animal canina que coabita com os protagonistas da obra, a Dali, a cadela Labrador, «que há muito fazia parte da família com uma dedicação e lealdade incomparáveis» (Franco, 2016: 19), e são igualmente sugeridos pela actuação do chefe da alcateia. De igual modo, temáticas como a ecologia, a protecção do ambiente ou o respeito pela natureza – que aqui é também constantemente elogiada – perpassam o conto em pauta. Releia-se a este propósito o seguinte excerto: 


«A Inês, o Gonçalo e a Matilde tinham, de facto, uma curiosidade insaciável, e, por isso, aproveitávamos o tempo possível para passear na natureza e identificar os elementos mais importantes: fauna – espécies, tocas, ninhos, hábitos de alguns animais e vestígios deixados pela sua passagem; o canto dos pássaros e os tipos diferentes de voo – e flora – árvores, plantas, aromas, utilidades e perigos» (idemibidem: 21).


E há, ainda, um outro veio ideotemático que, neste conto, se substantiva e que, na nossa perspectiva, merece ser sublinhado. Trata-se das relações familiares e da alegria do convívio entre um avô, que aqui assume a função de voz narrativa ou narrador, e os seus netos que o admiram e que se divertem e aprendem – aliás, este avô tinha sido professor (idemibidem: 13) – na sua companhia. E nunca é de mais referir esta vivência intergeracional, tão salutar e, por vezes, tão arredada do quotidiano de tantas crianças, porque, como deixa escrito José António Franco neste seu livro, 


«O tempo que passávamos juntos era fantástico: um galope frenético de dias com recordações intensas e afectos revigorados.

Tempo de aprendizagens também: eles, inocentes como a sombra das flores – mas ávidos de saber -, iam descobrindo os sinais relevantes da natureza e das pessoas e amadureciam a atenção aos pormenores; eu, jovem incorrigível, aprendia a ser um avô com préstimo, retribuindo a felicidade de vê-los crescer na minha companhia.» (idemibidem: 20). 


O tópico da memória é aqui também especialmente relevante, como se constata, por exemplo, pela referência (crítica) que é feita à linha ferroviária desactivada: 


«Ao fundo da encosta, vislumbrava-se a velha linha de comboio amortalhada pelo esquecimento: quase um século de serviço devorado pelo abandono de governantes que permitiram que o vazio, a tristeza e as ervas se apoderassem definitivamente dos carris. / Memória em ruína de uma viagem sem regresso.» (idemibidem: 24).   


A acção evidencia uma estrutura claramente delimitada, sendo composta por quatro momentos, correspondentes: à situação inicial – a chegada de Inês, Gonçalo e Matilde e o seu acolhimento pelo avô –; às peripécias – a caminhada pela floresta, «ao longo da margem direita de um afluente do Douro» (idemibidem: 21), e os esforços concertados para salvar um «pequeno canídeo» (idemibidem: 28) –; ao ponto culminante – o salvamento do animal –; e ao desenlace feliz, com o regresso a casa sãos e salvos. Note-se, ainda, que, depois de fechada esta acção, o relato prolonga-se e ressitua-se um ano mais tarde, para dar conta do gesto muito humano de um lobo. É este que, em última instância, acaba por salvar um outro avô e os seus netos que se encontravam na iminência de serem apanhados por um incêndio no meio da mata. 


Situada espacialmente no Douro – «vale do Douro» (idemibidem: 14) – e decorrendo em tempo de férias, esta aventura – se assim nos é permitido apelidá-la, porque, de facto, não deixa de haver aqui aspectos próprios da narrativa de aventura ou de mistério – é, portanto, protagonizada por três netos e por um avô, grupo ao qual se junta a sua já referida fiel cadela Dali. Simples, mas apelativo, o enredo desenvolve-se, pois, em torno de uma incursão na mata e do resgate do rio de um canídeo (que, depois, se sabe que é um lobinho), operação arriscada que tem como principal agente Dali.


O relato – colocado na voz de um narrador participante, um avô, como mencionámos, que vive no Porto, cidade a partir da qual conta a história vivida numas férias no Douro, onde tem uma casa – concretiza-se de forma viva e prende o leitor pela simplicidade, pelos sugestivos apontamentos descritivos, pela originalidade das metáforas e das personificações, pelo uso eficaz do adjectivo e, ainda, pelo visualismo/sensorialismo, muitas vezes, decorrente da presença de sugestões/sensações visuais e auditivas, por exemplo, e do recurso delicado à sinestesia. Tomemos como exemplos algumas das passagens de abertura do conto: 

«Era quase meio-dia e um silêncio luminoso e inesperado inundou por momentos todo o vale. (...)


A locomotiva, ainda ofegante, deitava desconsoladas contas aos quilómetros por percorrer – dezenas de curvas estafantes a bordejar os montes e o negrume de uma mão-cheia de túneis mal-encarados e bafientos.» (idemibidem: 11-12).

A este propósito, releia-se, igualmente, o segmento: «Estava uma manhã de luz magnífica. Uma mistura intensa de aromas, de verde, de cantos fantásticos dos pássaros e a sonoridade do rio rebolando endiabrado para desaguar.» (idemibidem: 24). 


Aliás, as sugestões auditivas, muito recorrentes e fortes, imprimem ao texto um realismo que muito atrai o leitor. Exemplos disso são expressões como «desusado alarido» (idemibidem: 12), «gritos de alegria» (idemibidem: 12), «o eco de cada badalada (...). Um magnífico recital de carrilhão que ficávamos a ouvir até à última réplica.» (idemibidem: 16), «soou um apito pouco enérgico» (idemibidem: 17), «atentos à cadência das rodas sobre as juntas dos carris: tangatam, tangatam, tangatam...» (idemibidem: 18), entre outras.


Acresce, ainda, o facto de o discurso, que se pretende próximo do potencial destinatário, que, note-se, é desafiado no final da obra – «Desde então não me canso de contar esta história. / Agora é a vossa vez.» (idemibidem: 40) –, e que se singulariza também pelo tom coloquial – «Mas siga a história, que é para isso que aqui estamos e vale a pena das notícia daquelas duas semanas, como adiante veremos.» (idemibidem: 20) –, se apresentar expressivamente marcado por uma poeticidade invulgar – essa poesia que é tida como estratégia e que configura um traço relevante da escrita de José António Franco –, como atestam expressões como «um caminho largo, com o chão coberto de tufos de erva salpicado por margaridas brancas» (idemibidem: 24) ou «Como se nada tivesse acontecido, o rio, ali ao lado, continuava a sonhar com as águas da foz.» (idemibidem: 36).


Um apontamento, ainda, acerca do design do volume. A configuração gráfica da obra, da autoria de Bruno Inácio, como provam a capa e a contracapa, prima pela sobriedade, assentando na conjugação das cores verde e negro sobre fundo branco. Não foi certamente irreflectida a opção pelo verde, tom que se reveste de uma importante simbologia. A recriação visual do lobo, com laivos do desenho científico, é reveladora da beleza, bem como da postura forte e corajosa, deste mamífero, tornado aqui protagonista da narrativa. Na realidade, em nosso entender, esta imagem substantiva pictoricamente a seguinte passagem do conto:

«Depois olhou-nos majestoso, mas o seu olhar já não provocava temor.

Nobreza de rei agradecendo com humildade.» (idemibidem: 35).    


Terminamos, sublinhando o facto de este conto de José António Franco, que cativa pelos afectos que dele emanam, na nossa perspectiva, integrar, ainda que em certa medida e com uma evidente discrição ou subtileza, essa bela herança da fabulística tradicional. O lobinho e a sua alcateia são aqui mais uns lídimos representantes da sua condição e espécie em moldura quotidiana ou aventurosa. São lobos literariamente revisitados na sua condição animal, juntando-se a esta um inesquecível traço humanizador.



Referência bibliográfica

 

FRANCO, José António (2016). O Lobinho. Coimbra: Lápis de Memórias.

 

 

A obra pode ser adquirida aqui.

 

Sara Reis da Silva

 

Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho