Pintassilgo
O pintassilgo diz:
— nada me consola,
eu não sou feliz
nesta gaiola.
Do céu azul e da amplidão
eu sinto muitas saudades.
Não quero esta solidão
cada minuto e segundo.
Crianças, quebrem as grades
de todas as gaiolas do mundo.
Em outro lugar, referi-me a Sidónio Muralha como um escritor injustamente esquecido em Portugal, não obstante o facto de alguns dos seus livros infantis integrarem as listas de obras recomendadas nos documentos programáticos em vigor, no domínio da educação literária. Passados quase quarenta anos sobre a sua morte, e completados 100 anos sobre o seu nascimento, a sinalização do autor e da sua obra em território nacional far-me-ia recuperar o que havia dito, não fora a publicação, em hora boa, do livro O Companheiro, com sugestivas ilustrações de Irene Sá, pela Página a Página, em novembro de 2020.
A disponibilização de O Companheiro no mercado editorial constitui, indubitavelmente, um valor acrescentado à tematização literária da Revolução de Abril, alargando, assim, o leque de escolha dos professores do Ensino Básico para trabalho em sala de aula.
Habituados que estamos às poeticidade e inventividade da escrita de Sidónio Muralha, O Companheiro não foge a esses princípios, que são também a sua originalidade. Organizada em sete pequenos capítulos – O homem bom e justo do chapéu verde, Outro homem justo mas sem chapéu, O casaco e o chapéu dos democratas, O espantalho que não sabe assustar, O amigo, Os militares e A grande festa do povo –, a narração da história da Revolução de Abril concretiza-se pela sequencialização vertical própria da poesia (lírica), gerando notações melódicas (internas) de grande beleza e desempenho semântico-pragmático.
Tentarei resistir ao impulso de uma análise exaustiva desta obra, que não cabe neste espaço, sinalizando e generalizando algumas situações / processos técnico-compositivos que conferem visilegibilidade (não tanto a dos aspetos propriamente tipográficos, de que falava Jacques Anis quando cunhou o termo, mas a que respeita à organicidade interna da própria poesia) a esta prosa que se dispõe a ser lida-vista, lembrando, com Jean-Michel Adam, que ler-ver o texto poético é condição sine qua non para nos apropriarmos dos ritmos e da significação deles decorrente.
Para além da organização do discurso em estrofes (de amplitude variável – monósticos, dísticos, quintilhas, sextilhas, décimas, etc.), a poeticidade decorre de processos de repetição de palavras que colocam em evidência conceitos-imagens-chave, por exemplo, logo no primeiro capítulo, em que se destacam as palavras/expressões como «chapéu» e «chapéu verde», «todos», «homem / homens», «homem bom e justo», «crianças» e «liberdade», cuja significação é intencionalmente intensificada por via de anáforas, de epíforas e de anadiploses:
O dono do chapéu verde
era um homem bom e justo.
Todos sabem o que é um chapéu.
Todos sabem que há chapéus
de cores diferentes
e de vários tamanhos e feitios.
Também todos sabem
o que é um homem.
Mas muitos vão perguntar
o que é um homem bom e justo.
Muito bem.
O dono do chapéu verde
era bom e justo porque
não defendia só a sua liberdade
mas a liberdade de todos os homens.
Não queria livros unicamente
para as crianças ricas mas para todas
as crianças do mundo.
Se atentarmos no excerto transcrito, o quantificador universal «todos» remete para um coletivo, para uma totalidade, e não para uma singularidade, contribuindo para a intensificação do sentido da mensagem que se inscreve, desde logo, na bondade e justeza deste «dono do chapéu verde» por contraponto ao «Senhor fascista», «o dono do país» que deu ordem aos PIDE para o silenciar e assim adiar o seu projeto de igualdade, de justiça e de liberdade:
Foi perseguido pelos Pides.
Os Pides tinham armas
mas não tinham ideias.
O homem bom e justo
tinha ideias mas não tinha armas.
As armas dispararam e o chapéu verde voou,
sobrevoou as montanhas e as colinas,
desceu o vale, parou entre as árvores
que o homem bom e justo defendia.
Se até então os leitores se questionavam sobre a razão de este «homem bom e justo» usar um «chapéu», ou antes, um «chapéu verde», as duas estrofes acima transcritas fornecem a chave do mistério e espessam a mensagem global da obra. Assim, o chapéu desta personagem é mais do que uma prerrogativa masculina ditada pela moda e ao serviço da distinção social. Trata-se, antes, de um objeto ancestral cuja função era, por um lado, a de proteção da cabeça contra este ou aquele tempo atmosférico e, por outro, a de proteção figurada das ideias do indivíduo que usa esse acessório, já que «chapéu» deriva do latim caput que significava «cabeça», «cérebro», e, por extensão, as ideias (que, segundo Horácio, Cícero e outros pensadores romanos, conferiam honra e cidadania às pessoas). No contexto histórico e cultural para que aponta o texto, o uso do chapéu associa-se à imagem das pessoas que trabalham de sol a sol, ou seja, ao povo – esse povo (mais letrado ou menos letrado) que se opôs ao regime fascista e combateu, com ideias próprias (e muitas vezes com a vida) o Estado Novo.
Desta forma se compreende que este «chapéu» só poderia ser «verde», cor simbólica por natureza e que a própria natureza caracteriza. Verde é, pois, a cor do mistério da existência, revelado sazonalmente para lembrar aos homens a sua própria humanidade e afirmar a esperança num mundo renovado. E, no último capítulo, podemos ler:
Mas o Povo, que só tinha passado,
agora também tem futuro.
As crianças de hoje,
que são os homens e as mulheres
de amanhã, terão uma Pátria
sem Senhor Fascista e sem Pides.
Elas são livres.
Livres.
Um pouco mais sobre Sidónio Muralha:
Sidónio Muralha integrou, até 1950, data em que voluntariamente parte para o exílio (Congo belga), como forma de contestação do regime fascista do Estado Novo, o grupo coimbrão do Novo Cancioneiro. Até esta altura, o Escritor publica, em Portugal, os primeiros livros de poesia para adultos – Beco (1941), Passagem de nível (1942), Companheira dos homens (1950). Em 1949, Sidónio Muralha estreia-se na literatura para crianças com a publicação de Bichos, Bichinhos e Bicharocos cuja cuidada edição – reeditada em 2010 pela althum.com / Centauro – é ilustrada por Júlio Pomar e apresenta três poemas musicados – com reprodução das respetivas partituras – por Francine Benoit (musicóloga francesa que trabalhou no Jardim-Escola João de Deus e na Academia dos Amadores de Música, tendo sido amiga de Fernando Lopes-Graça). Esta obra e outras que se seguirão a partir dos finais dos anos 40, escritas por autores ligados ao movimento neorrealista contribuíram para uma mudança qualitativa na literatura portuguesa para crianças, por via do tratamento de novas temáticas (a infância camponesa, em Alves Redol; as crianças pobres de meios urbanos, em Ilse Losa e Matilde Rosa Araújo; tópicos relacionados com um olhar mais científico sobre a vida natural, em Redol, também, e em Papiniano Carlos, para não referir outros aspetos em que avulta, por exemplo, uma certa crítica a comportamentos sociais, patente, aliás, no Autor de Bichos, Bichinhos e Bicharocos).
Após o exílio voluntário no Congo, Sidónio Muralha viaja para São Paulo, em 1962, fixando, posteriormente, a sua residência em Curitiba. Em S. Paulo, funda, juntamente com o escritor Fernando Correia da Silva e o fotógrafo e artista gráfico Fernando Lemos, a editora Giroflé, dedicada exclusivamente à publicação de livros infantis e juvenis. Trata-se de um projeto verdadeiramente inovador que trouxe ao panorama editorial brasileiro um novo conceito de livro infantil pautado pela qualidade gráfica, pelo design moderno e colorido, pela escolha do papel Kraft e da capa dura, pela ousadia relativamente a novos formatos, nomeadamente o formato à italiana (retangular e alongado), como hoje é conhecido. A estes aspetos acrescem as boas escolhas textuais e a divulgação de nomes que enobrecem a literatura para a infância e a juventude, como é o caso de Cecília Meireles (1919-1964) com Ou Isto ou Aquilo.
Ainda em 1962, Sidónio Muralha recebe o Prémio Internacional da II Bienal do Livro de São Paulo pelos poemas de A Televisão da Bicharada, ilustrado por Fernando Lemos e com a chancela da sua editora. Para além desta distinção, Valéria e a vida valeu ao Autor, em 1976, o Prémio Secretaria de Estado do Ambiente, que distinguia livros infantis de temática ambiental; e Helena e a cotovia, obra que seguia idêntica linha, recebeu o Prémio Portugal ’79, instituído pela Secção Portuguesa do IBBY (International Board on Books for Young People).
Em 1979, destaco a publicação de Catarina de todos nós, um dos raros exemplos, na literatura portuguesa para os mais novos, de um texto dedicado a um episódio marcante da resistência à ditadura salazarista: o assassinato, em 1954, de Catarina Eufémia, jovem camponesa alentejana em luta, juntamente com os seus companheiros, por melhores condições de vida, e cuja reedição, em Portugal, pela Página a Página, estará para breve.
Injustamente esquecido, em Portugal, país de onde disse nunca ter saído, o Brasil lembra e valoriza este poeta lusitano de forma tocante – os seus livros para a infância continuam a ser reeditados e a integrar os planos curriculares do Ensino Fundamental (Básico), juntamente com Ou isto ou aquilo (1964), de Cecília Meireles e A arca de Noé (1974), de Vinicius de Moraes – livros e autores que, no Brasil, operaram uma viragem na concepção estético-pedagógica de literatura infantil e juvenil a partir de inícios da década de sessenta, investindo na qualidade dos textos.
Registe-se, por último, que, em 2009, a editora Cosac Naify reeditou as primeiras edições da Giroflé, mantendo fidelidade aos originais e assinalando, deste modo, o significado histórico-cultural que tais livros tiveram no panorama editorial brasileiro.
A obra de Sidónio Muralha simultaneamente informa, diverte e coloca em ação a construção de um mundo mais justo – sem dúvida, um escritor a ser lido e relido.
Para ler e conhecer Sidónio Muralha:
Bichos, bichinhos, bicharocos (1949; reeditado em Portugal em 2010 e 2012)
A televisão da bicharada (1962)
Um personagem chamado Pedrinho – vida de Monteiro Lobato contada às crianças (1970)
O companheiro (1975; reeditado em 2020)
A amizade bate à porta (1975)
Valéria e a vida (1976)
A dança dos Pica-Paus (1976)
Sete cavalos na berlinda (1977)
Todas as crianças da terra (1978)
Voa pássaro, voa (1978)
Catarina de todos nós (1979; a ser brevemente reeditado pela Página a Página)
Helena e a cotovia (1979)
Terra e mar vistos do ar (1981)
O rouxinol e a sua namorada (1983)
A revolta dos guardas chuvas (1988)
Os três cachimbos (1999)
O trem chegou atrasado (2004)
A mais recente edição de O Companheiro pode ser adquirida aqui.
Ana Cristina Vasconcelos de Macedo
Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto