domingo, 23 de agosto de 2020

Roda que Roda, de João Manuel Ribeiro e Miriam Reis

Não é de hoje a ligação entre a arte, em geral, e a literatura, em particular, e a ciência. É sabida, por exemplo, a associação estética de algumas das extraordinárias criações do artista gráfico holandês M. C. Escher (1898-1972) à ciência do matemático inglês Roger Penrose (1934-). António Gedeão (1906-1997), pseudónimo literário do professor e cientista Rómulo de Carvalho, é autor de um dos mais célebres poemas da literatura portuguesa, «Lágrima de Preta», texto perpassado pela ciência, mas sustentado por tópicos como a igualdade, a tolerância, a condenação do racismo, em última instância, um forte humanismo, e que viria a ser musicado por José Niza (1938-2011), e cantado por Adriano Correia de Oliveira (1942-1982), em 1970. Ainda, em 1981, Rómulo de Carvalho publica o texto dramático História Breve da Lua, obra para a infância na qual se retomam algumas lendas e curiosidades relativas à Lua. Já na poesia de potencial recepção infantil, por exemplo, a ligação entre a palavra literária e a matemática celebra-se em volumes tão belos como Pequeno Livro de Desmatemática, de Manuel António Pina (1943-2012) ou As Letras de Números Vestidas (2010), de João Pedro Mésseder (Porto, 1957-). 

No caso de Roda que Roda (Trinta por uma Linha, 2019), o mote veio do tópico da energia e do desafio lançado a João Manuel Ribeiro (Oliveira de Azeméis, 1968-) pela equipa do projecto Cenas & Ciências, iniciativa de um grupo de docentes, investigadores e colaboradores da Escola de Ciências e do Instituto de Educação da Universidade do Minho, cuja concretização tem tido lugar em todos os jardins-de-infância e em todas as escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico do Agrupamento de Escolas de Terras do Bouro.   

Trata-se, pois, de uma antologia poética inspirada por um conjunto de conceitos e, naturalmente, vocábulos situados no universo lato da energia, e sensivelmente poetizados em vinte e quatro textos breves e diversos, em termos estruturais e técnico-expressivos.

Assim, convivem, em Roda que Roda, composições poéticas breves ou muito breves, como «Energia Solar» ou «O carro do Sol», e outras mais longas como «Sinergias», «A roda dos alimentos» ou «Vivam as folhas», texto que, inscrito nas guardas finais do volume, fecha a colectânea. Comum a vários poemas, além do registo vivo e coloquial – como é visível, por exemplo, no poema «Curiosidades...» –, reflectindo uma certa tendência para a concreção (recurso a nomes comuns) e para o recurso a verbos actanciais (movimento), é o recurso às repetições, seja de vocábulos ou fonemas, seja de estruturas, muitas resultando num especial paralelismo de construção/anafórico. Veja-se, a título exemplificativo, o poema de abertura, «No princípio de tudo», ou, ainda, o terceiro «Energia solar», exercício criativo com uma especial cadência, baseado não apenas na retoma/repetição/paralelismo, mas também na expansão frásica:

O Sol
O Sol volta
O Sol volta e volta
O Sol volta e volta e volta
O Sol volta e volta e volta e volta
 
&
 
O Sol nunca se revolta
O Sol nunca se cansa

de ser criança 

 
Um caso especialmente original é o do poema «Rodopios»:

 

Em redor do pião,
rodopiamos...
 
Em redor da roda,
rodopiamos...
 
Em redor do Sol,
rodopiamos...
 
Em redor do vento,
rodopiamos...
 
Em redor dos alimentos
rodopiamos...

Em redor da energia,
rodopiamos...

Em redor de nós,
rodopiamos...


Este texto, que – pela forma verbal na primeira pessoa do plural (nós) “rodopiamos” – parece incluir/envolver o destinatário extratextual na “acção”, representa um exemplo muito interessante do diálogo que se celebra entre o registo poético de João Manuel Ribeiro e as ilustrações de Miriam Reis (Gafanha da Nazaré, 1978-), uma ligação que resulta numa configuração de carácter experimental, visual ou concreto, revelador do dinamismo inerente ao próprio poema.  

Na verdade, o design e a ilustração, assinados por Miriam Reis, compõem um todo harmonioso, que revela não apenas as competências de leitura e interpretação, mas também a sensibilidade artística da sua autora. Este é, pois, um discurso que se distingue pela constância e pela coerência cromáticas, bem como pelo equilíbrio ao nível da disposição dos elementos/detalhes pictóricos ao longo de todas as páginas duplas. Construída a partir de uma técnica mista, nascida do desenho (à mão), da colagem e da digitalização, por exemplo, que privilegia as texturas, os tons suaves – introduzidos logo na capa e na contracapa, que, aliás, compõem uma unidade visual, sendo prolongados até às guardas iniciais e finais e estendidos também ao interior da publicação –, a par da reiteração de linhas, pontos, formas geométricas, principalmente circulares, alguns vetoriais, entre outros, a ilustração revela um original impulso criativo e um especial carácter imaginativo, próprios de uma ilustradora que guarda certamente em si muito para dar aos livros para a infância. A título aperitivo – apenas como forma de estímulo à leitura –, saliente-se, por exemplo, a recriação visual dos poemas «O Pião Gingão e Brigão», texto que integra a expressão titular da obra «roda que roda» visualmente materializada, e «Desconversar?», composição emoldurada por subtis balões de fala.

Assim, pelo que aqui sucintamente foi exposto, Roda que Roda é uma colectânea poética que vale a pena conhecer, ler e dar a ler, sempre com os olhos postos nas palavras e nas ilustrações, sempre com os ouvidos abertos à sua musicalidade, sempre à procura de todos os fios, de todos os sentidos que o poeta cruza, que a ilustradora volta a cruzar, ou, por vezes, descruza, e que o leitor se diverte a procurar e a guardar energicamente em si.



Sara Reis da Silva
Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho