quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A poesia de Antonio García Teijeiro e “As coisas que faz o mar”

Natural de Vigo, Antonio García Teijeiro (n. 1952) é uma conhecida voz das literaturas galega e hispânica, premiado várias vezes pelos seus livros de poesia para a infância e a juventude, autor de poesia para adultos e também de contos para a infância e de narrativas para jovens, além de regular colaborador na imprensa. É, cumpre dizer, um amigo de Portugal, inveterado melómano e um leitor, e por vezes divulgador, de poesia portuguesa. O seu Versos de agua (1996) está considerado pela Fundação Germán Sánchez Ruiperez um dos 100 livros mais importantes da literatura infantil e juvenil espanhola do século XX, e Na fogueira dos versos (1996) obteve o Prémio Merlín de Literatura Infantil 1996, o Prémio Pier Paolo Vergerio 1998 (Itália) e foi incluído na Lista de Honra do IBBY de 1998. García Teijeiro é, além do mais, um homem bom e generoso e um pedagogo de renome (publicou livros e artigos nesta área), especializado em questões como a educação poética e a promoção da leitura.

Começando por recuperar aqui trechos, reformulados, de artigos que antes publicámos, destacaremos alguns dos livros deste poeta que tem trazido a lume dezenas de títulos. García Teijeiro viu editada, em 2015, uma obra em castelhano (pois escreve no idioma galego e na língua de Castela), intitulada En la cuna del mar (Creotz, colecção de poesia ilustrada ‘Hilo de cometa’), ou seja, “no berço do mar”. Com soberbas ilustrações de um dos maiores artistas da ilustração galega, o premiado Xosé Cobas, este livro de versos para todas as idades nasce da rica e sempre revisitada constelação temática do mar e do seu movimento (ondas, lua, vento, sol, navegação, aves marinhas…) – que, pensando em Portugal, nos traz de imediato à lembrança as cantigas de amigo trovadorescas, além de Camões, Afonso Lopes Vieira, Pessoa, Álvaro Feijó, Sophia de Mello Breyner Andresen e muitos outros. Feito de sedutoras subtilezas rítmicas e grafemático-visuais (García Teijeiro tende a explorar as variadas dimensões do policódigo literário), o poemário embala o jovem leitor na sua música insinuante, apetecendo musicar e cantar algumas das composições, muito vocacionadas para a leitura em voz alta. E, como sempre acontece neste escritor, detectam-se os ecos (assumidos) de notáveis poetas da tradição hispânica, como a galega Rosalía de Castro, os andaluzes García Lorca e Alberti ou ainda desse poeta mártir do fascismo franquista, que foi Miguel Hernández (a quem, aliás, é dedicada uma das mais belas composições de En la cuna del mar). 

Antonio García Teijeiro viria ainda a ganhar a mais prestigiada distinção dedicada ao livro infantil e juvenil no estado espanhol: o Prémio Nacional de Literatura Infantil e Juvenil, pelo seu livro Poemar o mar (2016), obra poética de insinuante musicalidade e diversidade compositiva, bem enraizada na cultura galega, com a qual encerra a sua trilogia de temática marítima/marinha, iniciada com Palabras do mar (Edicións Embora, 2015). As belas ilustrações de Poemar o mar são de Xan López Domínguez e a chancela é a das Edicións Xerais de Galicia, de Vigo – cidade onde o escritor vive e compõe os seus versos, marcados pela vizinhança com a ria e com o gigantesco porto pesqueiro.

García Teijeiro exprime-se ora em galego (idioma preferencial, pois estamos perante um galeguista convicto) ora em castelhano, e é, portanto, um poeta do mar, da música (uma das suas paixões) e da paz, e um cultor também duma ecopoética que não se exime de denunciar as ameaças que pendem sobre o ambiente e o planeta. (Aceite-se, a este propósito, um convite à escuta do grande cantautor Paco Ibañez, que musicou poemas de García Teijeiro, como “Pomba”  e “Que ocorre na Terra”. Sobre Paco Ibañez, sugere-se a leitura de um artigo publicado em A Inocência Descompensada).

Mas o poeta revela-se também como um explorador da dimensão lúdica e visual das palavras e do texto, e como um pedagogo da sensibilidade humana e artística – no sentido nobre da palavra pedagogo –, em especial nos seus livros de versos para a infância.

Assim ocorre em outros volumes, como Paseniño, paseniño (Xerais, 2018), acompanhado de um CD musical com poemas recitados pelo autor. Uma obra não apenas para os mais pequenos, mas para todos, que conquista igualmente pela qualidade poética e plástica das ilustrações de Marcos Viso. Outro exemplo é Caderno de fume (Edicións Embora, 2018), com boas ilustrações de Leandro Lamas, também para a infância, que explora poeticamente o motivo do fumo e o seu potencial em termos de alargamento do imaginário e de sensibilidade à materialidade da palavra – questões essenciais na educação poética.

Muito desafiante é também outro livro, este escrito em castelhano, para jovens adultos e adolescentes, cujo título é todo um programa: Escritos en el viento: Narraciones y poemas en torno a Dylan (Verbum, 2017). Trata-se de uma parceria com o escritor catalão Jordi Sierra I Fabra (outro melómano), na qual alternam textos narrativos breves e poemas que, de algum modo, comentam as composições do autor de “Blowin’ in the wind”, as tomam como motes e prestam tributo a Dylan. Assinale-se que já os livros infanto-juvenis Petando nas portas de Dylan (2007) e Recendos de aire sonoro (2011) se inspiravam,respectivamente, na música do compositor/intérprete de Nashville Skyline e na dos Beatles, de Beethoven e doutros vultos; e registe-se que Queda a música (2013) tem a expressão musical como elemento inspirador/propulsor. Em suma, e como se observa, García Teijeiro escreve por ciclos, sendo que cada ciclo se encontra na origem, por vezes, de mais do que um volume. É possível, assim, falar do ciclo do mar, do ciclo da música, etc. Dentro de cada ciclo, as estruturas formais são variadas, podendo ir do poema de feição estrófica e rimática tradicional à composição em verso livre, segmentada de modo peculiar, passando pelo haiku. Um exemplo desta última forma: “Num baloiço, / vaivém de notas loucas, / riem as crianças.” (As Coisas que Faz o Mar, p. 42, em tradução de João Manuel Ribeiro).

Já em Poesia cromática (Belagua, 2017), é proposto um livro singular de poesia e pintura (a de Xulio García Rivas), em princípio destinado a um público adulto: García Teijeiro escreveu poemas a partir dos quais García Rivas pintou; em seguida, a pintura desencadeou nova escrita e esta, por sua vez, nova pintura. O resultado é uma sugestiva aventura poética e visual, até por nela se integrar a caligrafia do poeta, pois cada um dos poemas surge também em forma manuscrita, nas páginas ilustradas.

Foi com base em dezassete dos livros de poemas para a infância e a juventude publicados por Antonio García Teijeiro que o escritor e editor João Manuel Ribeiro organizou As coisas que faz o mar (Trinta por Uma Linha, 2018), assinando ainda a tradução para português. A ilustração da capa é de Xan López Domínguez, a contracapa ostenta uma bela fotografia do poeta, e a selecção começa com versos mais recentes (de Poemar o mar, 2016) e termina com uma amostragem dos mais antigos (de Versos de Auga, 1989). Um curto exemplo retirado de Palabras do mar com o título “Cintilações do mar” (p. 31):

 

O mar

           não tem paredes.

Por isso agarra-se ao horizonte.

 

Cruza 

           um barco

                          em silêncio

                                             as veias

                                                          do mar.

 

A lua galopa

                      sobre o mar.

                                           Cavalo de cristal.

                                                         Invisível.

                                                                       Golfinho de luz. (…)

 

A selecção é bastante representativa das linhas de força da poética de García Teijeiro, a edição visualmente cuidada, e a tradução para português a partir do galego, por incrível que pareça (dada a aparente proximidade dos dois idiomas), nem sempre se revela fácil, como comprovam várias das soluções encontradas. Por outro lado, oxalá uma segunda edição permita à editora corrigir as incómodas gralhas patentes no texto, como as que se detectam, por exemplo, nas pp. 42, 61, 64, 69, 70, 74, 77, 84, 86. 


Em boa hora é possível ler Antonio García Teijeiro e a sua poesia em português. E em boa hora se vem juntar à plêiade de escritores com títulos de literatura galega para a infância e a juventude já publicados na nossa língua, como Manuel María, Agustín Fernandez Paz, Xabier Docampo, Manuel Rivas, Fina Casalderrey, Marilar Aleixandre, Miguel Vázquez Freire, Marina Mayoral e outros.


Vale a pena referir, por último, que García Teijeiro mantém um interessante blogue de literatura e música, escrito em língua galega, e muito recomendável: Versos e aloumiños. Este blogue foi criado pelo filho de García Teijeiro, Antón García-Fernández – professor de língua, cultura e literatura espanholas na Universidade de Tennessee Martin (USA) e outro amigo da cultura portuguesa de que é grande conhecedor. García-Fernández, melómano como o seu pai, alimenta duas paixões: o fado e o jazz clássico. 


Recomendem-se, por isso, visitas atentas e assíduas aos blogues que criou (mantidos com a sua companheira Erin García-Fernández), dos mais documentados que conhecemos, nas respectivas áreas: “Guitarras de Lisboa”, “All this is fado” e ainda “Jazz flashes”.


Em suma, Antonio García Teijeiro e Anton García-Fernandez: dois homens de cultura, dois homens do mundo que Portugal deve prezar.

 

José António Gomes

 

CIPEM | INET-md e IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto