sábado, 7 de março de 2009

Peter Pan: a infância imperecível

Peter Pan é um daqueles livros que aparentam guardar em si uma indefinível energia, um segredo imperscrutável, como se alguma coisa neles se furtasse ao bisturi da leitura crítica e reclamasse, antes, uma adesão afectiva sem reservas. E não é de admirar, se atendermos ao profundo enraizamento deste mundo ficcional em algumas das experiências mais comuns e densas da existência humana. Trata-se de uma história sempre actual, sobre a euforia da meninice, a relação entre filhos e pais, a dicotomia dependência vs. autonomia. E uma outra tensão emerge: por um lado, a perda da infância, por outro, a resistência a essa perda ao longo da vida. A este propósito, leia-se o diálogo das últimas páginas, em que Wendy, já adulta, rememora nostalgicamente as atribuladas aventuras vividas com Peter e os Rapazes Perdidos, na Terra do Nunca – essa mítica ilha povoada de fadas, piratas, sereias e peles-vermelhas:

«– Aqueles belos dias em que eu sabia voar!

– Por que não podes voar agora, mãe? [– perguntou a filha, Jane.]

– Porque sou crescida, querida. Quando as pessoas crescem esquecem-se.

– E porquê?

– Porque já não são alegres, inocentes e descuidadas e só os que são assim sabem voar.

– O que são os alegres, inocentes e descuidados? Quem me dera ser assim!» (Peter Pan. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 197).

Trata-se de um livro tão perene, afinal, como o próprio herói, Peter Pan, a eterna criança, sem mãe e quase sem memória, que se recusa a crescer e a tornar-se homem.       

Do autor – o escocês James Matthew Barrie (1860-1937) – se pode dizer que era um escritor eminentemente popular, com uma intensa relação com a mãe, e cuja trajectória o conduziu do jornalismo à publicação de romances de sucesso e à literatura dramática, à qual se dedica quase por inteiro a partir de 1901, após o casamento com a actriz Mary Ansell.

A comunicabilidade de uma escrita coloquial, sempre disponível para o humor e a ironia, e que sabe divertir e divertir-se com o próprio jogo da ficção e da narração, além da habilidade para conceber episódios e encontrar formulações que possuem o dom (releve-se o intencional lugar comum) de «falar ao coração» e à memória íntima de cada leitor ou espectador médio – eis um par de ingredientes que concorreram para o sucesso público da obra de Barrie. Êxito comum, acrescente-se, a outros autores de pouca erudição mas idêntico talento, como o dinamarquês Hans Christian Andersen (de quem se celebrou em 2005 o segundo centenário do nascimento). Vieram favorecer tal sucesso as numerosas adaptações dramatico-musicais e cinematográficas de Peter Pan: uma fita muda em 1924, um admirável filme de animação saído dos estúdios da Walt Disney em 1952, e uma comédia musical em 1954 (mais tarde transposta para os ecrãs de televisão), entre outras adaptações – isto sem falar da sequela Hook (1991), de Spielberg.

A tentação de adaptar Peter Pan ao cinema prende-se com a visualidade de muitas cenas e o seu potencial em termos de espectáculo, mas também com o suspense, a sucessão de lances dramáticos e, sobretudo, com a forma primitiva do próprio texto. É que este começou por ser uma peça, levada à cena com êxito em Londres, no ano de 1904; mais tarde foi reposta com novos actos e cenas, e finalmente recontada em livro, sob a forma de uma narrativa, em 1911, com o título Peter and Wendy. Em 1928, a peça teatral seria enfim publicada, existindo hoje estudos sobre este longo processo de escrita, encenações sucessivas e reescrita.

Juntamente com as obras de Edward Lear (em especial os limericks de The Book of Nonsense, 1846, e outros títulos) e ainda as de Lewis Carroll (as Alices de 1865 e 1872) e Robert Louis Stevenson, a narrativa de James M. Bar­rie – não obstante a sua originalidade – inscreve-se numa linha que se traduz em produções poéticas e narrativas caracterizadas ora pelo nonsense, o fantástico e o «irracional», ora pela sátira e o culto da aventura sem limites, deixando para trás o racionalismo vitoriano. Sem menosprezar as consideráveis diferenças existentes entre as diversas obras e respectivas matrizes culturais e visões do mundo e da infância, registe-se que Peter Pan ombreia, por outro lado, com esse punhado de livros de primeira água que a segunda metade do século XIX e o princípio do século XX legaram à infância e à juventude, e no qual avultam títulos como As Aventuras de Tom Sawyer (1876) de Mark Twain, As Aventuras de Pinóquio (1883) de Collodi, e A Ilha do Tesouro (1883) de Stevenson – obra onde Barrie foi beber elementos diversos, em especial no tocante à caracterização dos piratas.

Clássico da literatura tout court – e não só da chamada literatura para crianças –, o livro de Barrie mantém intacto o poder de surpreender e comover leitores de todas as idades e latitudes. Recorde-se outro passo do último capítulo: «[Wendy] passou as mãos pelo cabelo daquele rapazinho trágico [Peter]. Já não era uma rapariguinha de coração desfeito por ele, mas uma adulta sorrindo de tudo aquilo, embora com um sorriso molhado.» (p. 200)

Peter Pan, a fada Sininho, o Capitão Gancho e a pequena e maternal Wendy continuarão certamente a povoar os sonhos de muitas crianças. Mas também daqueles adultos que se recusam a inumar a sua própria infância, mantendo viva essa idade de todos os possíveis que, mesmo quando idealizada, os continua a impelir para a aventura e a mudança.           

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)