terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Gaspar com Os Pés Bem Assentes na Lua, de Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto

Mais um livro que põe a Língua (não a língua) a vibrar com o seu “sal” (Eugénio de Andrade). Saindo à beira do Natal, podia, claro está, ser o… açúcar da Língua. Vamos ver.

Rita Taborda Duarte é poetisa, como se sabe – na nossa memória ainda ecoa a feminil voz poética de Não Desfazendo (IN CM, 2023), a colectânea de poemas editados até Junho de 2023, acrescidos de um livro novo.

Mas Rita, que começou a sua obra para a infância há duas décadas, trazendo-nos esse belíssimo volume premiado que é A Verdadeira História da Alice (Caminho, 2004), com ilustrações de Luís Henriques – já nessa altura um cativante passeio pelo bosque da literatura e pelos enigmas e sortilégios da palavra –, nunca abandonou, bem pelo contrário, este domínio tão particular da criação literária que é a escrita para os mais jovens. Seguiu-se um número considerável de livros divertidos (e bem mais do que isso, claro), alguns inspirados numa experiência de mãe que vê os filhos a crescer e os reinventa enquanto personagens de ficção. E vários, doutro tipo, se seguiram. 

Chega agora Gaspar com Os Pés Bem Assentes na Lua (Caminho, 2024), iluminado (é o termo, considerando o próprio título) pelo bom gosto – designadamente no manejo e combinação da cor – de Sebastião Peixoto, ilustrador distinguido e muito apreciado (ainda bem que, neste trabalho de castanhos, azuis, cinzentos, brancos-e-negros, se foge ao estafado jogo das cores primárias vivas, “puras”, que enche o olho preguiçoso e que tem condicionado o gosto mainstream em matéria de ilustração do livro infantil em Portugal).

A pequena história é protagonizada por uma criança, Gaspar, e pela Lua e começa por trazer à lembrança do leitor adulto as ambíguas luas más, de aparência boa (sempre sedutora) de alguns poetas, como Federico García Lorca (recordo o “Romance de la Luna”, do Romancero Gitano (1928) esse poema extraordinário sobre os ciganos, o plaino andaluz, a infância e a morte, que nos assombra e ensombra na canção do enorme Paco Ibañez). É que Gaspar tem medo desta “feiticeira perigosa” que sabe como “aprisionar a cabeça das crianças deixando-as aluadas e lunáticas”, como se lê num peritexto. 

Com os “pés bem assentes na Lua” (e não na Terra, como quer o dito popular), Gaspar não se deixa iludir. Mesmo assim, alertando o mundo, jamais desiste de se manter de olhos-e-mente-e-tudo bem atentos à Lua, como qualquer poeta digno de tal nome.

Marca d’água da escrita de Rita para a infância é a exploração da Palavra, o seu direito e o seu avesso, o seu verso e o seu reverso, suas frentes e costas. E, em época de titubeação e vociferação, de luta pela “palavrodiversidade” (p. 5), deslindar o mistério de cada palavra, de cada expressão – que nunca se deslinda, por isso se mantém lindo e “essa coisa é que é linda” (Pessoa) – é um dos jogos preferidos de Rita Taborda Duarte. A tessitura linguística, ou, para ser rigoroso, literária de Gaspar com os Pés Bem Assentes na Lua(como o próprio título já indicia) é bem a ilustração do que acabo de dizer, com toda a pulsão neologística e lúdica que distingue a escrita, texto para ler (também) em voz alta, saboreando o tal açúcar da Língua. 

Quase a chegar ao segundo fim da narrativa – porque ela, avessa ao normal, tem dois fins –, uma nota lembra as muitas expressões que à Lua devemos e os seus sentidos: “cabeça na Lua”, “nascer com o **** virado para a Lua”, “lunática”, “aluado”, “lado lunar”…

Eu li e enquanto lia, apesar dos perigos, ia-me aconchegando nos braços desta Lua de Gaspar e nos braços do próprio Gaspar – nome de Rei Mago, em hebreu “o branco” (gathaspa), tal como a Lua em que o menino era vidrado. É bom a gente sentir-se aconchegada nos braços de um menino. Muito bom para a minha idade. E talvez para a noite de Natal. 

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

 

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Um livro para todos, ao lado do “Sempre!” – quer dizer, ao lado de Abril

O ano de 2024 viu aumentar muito o número de obras para a infância e a juventude que abordam a temática do fascismo e da sua derrota pelo 25 de Abril de 1974. Ao descrevê-las, convenhamos que não aplicaremos a todas, sem hesitações, o termo de literatura. Mas, com sugestivas ilustrações e uma impactante capa de Madalena Matoso, apostando tendencialmente nas cores primárias, como é característico do estilo desta artista, o livro de Rita Taborda Duarte, Sempre! (col. “Missão democracia”, edição da Assembleia da República, 2024), não nos deixa dúvidas. Nem nos deixa indiferentes. A inventividade linguística, sobretudo nos planos do léxico, das imagens e do registo oralizante mantido na narração (numa constante interpelação do narratário); um assumido uso de termos que não abdica de suscitar um enriquecimento vocabular do potencial leitor; o humor que não prescinde do elemento dramático nem da crítica inteligente e desassombrada, a par da intertextualidade, são apenas alguns traços que nos levam a embarcar num protocolo de leitura literária. De que intertextualidade se fala aqui? Sobretudo de um diálogo envolvente com textos de natureza músico-literária: Tordo/Ary, José Afonso, Sérgio Godinho, Adriano/Portugal/Alegre, Lopes-Graça/José Gomes Ferreira, Chico Buarque e vários outros (este é, de facto, um livro com música dentro, sem precisar de incluir qualquer CD áudio ou código QR). Depois, importa ainda falar da convocação de fragmentos de Sophia, de Ary, de Sena, de Ruy Belo, de Ramos Rosa, de Cesariny, de O’Neill pelo meio da narração. É como se na linguagem de Rita Taborda Duarte sempre tivessem estado naturalmente incrustadas estas pequeninas jóias expressivas. Trata-se, aliás, de um eixo da escrita da autora e que percorre tanto a sua poesia como os textos para crianças e jovens.

Um livro, pois, de recepção transgeracional, dado que quase todas estas citações são emocional e esteticamente interpelantes para leitores adultos com certo background político-cultural. Ajudam assim a criar uma atmosfera de nervura revolucionária e abrilista (“abrilar” é, aliás, um termo – vi-o utilizado, no ano transacto, por uma professora, numa unidade didáctica – que Rita faz questão em ter como “pequenina luz bruxuleante” ao longo desta sua narrativa de claro contorno poético, em que até o glossário final é poetizante e divertido). 

A prosa já vai longa e dou conta de que nada disse sobre a dimensão ideotemática e humana deste livro belíssimo e comovente. É que a autora adopta aquilo a que se pode chamar um registo autobiográfico (tendência que começa a reforçar-se na nossa escrita para crianças e jovens). E faz muito bem. A história que é contada na primeira pessoa com os recursos próprios da linguagem ficcional e da poesia é uma história de vida, em muito coincidente com a da escritora, da sua irmã e dos seus pais. Com um pai antifascista e exilado na Suécia (como aconteceu com Mário de Carvalho, pai de Rita), uma família a ser obrigada a deslocar-se para esse país para aí se instalar, uma dedicatória ao pai e à mãe… – são diversos, enfim, os elementos que, cruzados, nos induzem à activação de um “pacto” de leitura “autobiográfico” (no todo ou em parte – e garanto que não vou estar neste espaço a maçar ninguém com argumentos teóricos de matriz lejeuniana ou outra).

Enquadrado numa colecção que, no futuro, há-de ter muito que se lhe diga – dos pontos de vista ideológico, político, institucional, da proveniência autoral e de outros –, Sempre!, pelo que fica dito, é um livro de qualidade rara e que respira autenticidade, que respira um vivido, que seduz por essa via, mas que igualmente ilumina pela certeira caracterização do fascismo (grande Rita, a chamar os bois pelos nomes, e sem medo!) e, principalmente, pelo modo como exprime (sem deixar de divertir) a dimensão dramática e emocional de tudo o que é contado – e não é pouco – sobre o que foi a oposição democrática ao fascismo e sobre as implicações que teve na vida familiar e no crescimento de uma criança.

Uma nota final: e não é que a lindíssima capa de Madalena Matoso, criada muito antes de Abril de 2024, parece antecipar o que foi a explosão de gente, de alegria e de luta, nas ruas de Lisboa e do Porto, no passado dia 25? Sem o querer… acertou na mouche.

Um livro que recomendo e que, estou certo, ninguém esquecerá.

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais) da Escola Superior de Educação do Porto