terça-feira, 9 de agosto de 2022

Ana Luísa



Ana Luísa Amaral (1956-2022) não foi apenas uma poeta de alta, bela e reconhecida voz, em Portugal e no estrangeiro (a sua poesia está hoje reunida em O Olhar Diagonal das Coisas, 2022), e uma autora de livros para a infância e a juventude que devem ser lidos e apreciados: Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias, 1998; A História da Aranha Leopoldina, 2000; Auto de Mofina Mendes de Gil Vicente (adaptação), 2008; uma adaptação de A Relíquia de Eça de Queiroz, 2008; Como Tu, 2012; Lengalenga de Lena, a Hiena, 2019. Publicou ainda o romance Ara, 2013, e foi uma excepcional estudiosa de poesia (conhecedora de poetas das mais diferentes latitudes) e uma divulgadora igualmente excepcional, generosa e persistente. Deste ponto de vista, sinto uma dívida enorme em relação a’«O som que os versos fazem ao abrir», na Antena 2, e ao seu notável trabalho de investigação académica (designadamente no campo dos Estudos Feministas), importando lembrar outras intervenções radiofónicas suas, a par das muitas conferências, cursos e oficinas – era uma incansável e entusiástica trabalhadora das letras. Também como ensaísta e como tradutora (da sua paixão, Emily Dickinson, mas também de Shakespeare, de John Updike, de Louise Glück, de Margaret Atwood e de muitos outros poetas, para não falar das suas traduções de John Locke, de Virgina Woolf e de Wesker) fica o país a dever-lhe imenso. 

Mas Ana Luísa foi, além disso, uma mulher muito corajosa e livre, que ousou pôr publicamente o dedo em muitas feridas – e que, silenciosamente ou não, acabou às vezes sendo penalizada por isso, como sucede com todas as pessoas de coragem. Foi (e ainda bem) uma poeta com intervenção cidadã e política – o que hoje é cada vez mais raro. Para alguns, quase imperdoável. E isto sem nunca perder a doçura e afabilidade do olhar, da voz, da maneira de estar. 

Tive sempre com Ana Luísa um relacionamento muito cordial. Lembro-me de termos sido colegas na faculdade, em Germânicas – embora, nessa fase, apenas nos conhecêssemos de vista. Tínhamos uma amiga comum, Ana Gabriela Macedo, que foi quem primeiro me falou da sua poesia. Há muito, muito tempo. Foi membro do júri das minhas provas de doutoramento, em 2003, na Universidade Nova de Lisboa, e membro do júri das minhas provas para professor coordenador de Literatura Portuguesa, na Escola Superior de Educação do Porto, em 2006. Impecável em qualquer destas duas situações. Colega de irrepreensível trato, correcção e amabilidade. E de enorme qualidade, no plano académico. Devo acrescentar que foi boa e justa professora de ambos os meus filhos, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.


Escrevi sobre livros seus para a infância e, na minha faceta João Pedro Mésseder, reencontrámo-nos em 2005-2006, com outros escritores portugueses e galegos, no projeto Estafeta do Conto da Xunta de Galicia e da Direção Regional de Cultura do Norte (promovido por Xavier Senín Fernández e Helena Gil Coutinho), o qual deu origem à publicação de duas novelas juvenis bilingues. A de Ana Luísa: Passos de música, caminhos de água/Pasos de musica, camiños de auga (em co-autoria com Fina Casalderrey, Vergílio Alberto Vieira e Xabier Docampo – um grande escritor e amigo também já desaparecido). Tempos bons e luminosos, perdidos (ou ganhos) entre o norte de Portugal e a Galiza. 


Hoje, os leitores de poesia e o país como um todo perderam um ser humano e uma artista de excepção. Saibamos honrar a sua memória e fazer bom uso do muito que nos lega. 

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MÚSICAS, de Ana Luísa Amaral

 

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.

E deito-me a seu lado,

a cabeça em partilha de almofada.

 

Os sons dos outros lá fora em sinfonia

são violinos agudos bem tocados.

Eu é que me desfaço dos sons deles

e me trabalho noutros sons.

 

Bartók em relação ao resto.

 

A minha filha adormecida.

Subitamente sonho-a não em desencontro como eu

das coisas e dos sons, orgulhoso

e dorido Bartók.

 

Mas nunca como eles,

bem tocada

por violinos certos



6-8-2022

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do inED da ESE do Porto