terça-feira, 24 de novembro de 2020

Luísa – As Histórias da Minha Vida, de Luísa Ducla Soares: uma obra bela e necessária

Neste ano de 2020, as comemorações dos 50 anos de vida literária de Luísa Ducla Soares – que se estreou nas letras, em 1970, com um belo livro de poesia para adultos, Contrato, marcado já por um discurso lírico pessoal, ligado às preocupações estéticas e sociais do grupo de Poesia 61 (Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Maria Teresa Horta…) –, tais comemorações, dizia, concretizadas em novos livros, atravessaram este período de pandemia como uma pequena luz feita de graça, de talento e de devoção à escrita por parte da que é, há muito, uma grande senhora das nossas letras e um ser humano raro. 

As principais editoras que publicam as obras de Luísa Ducla Soares trouxeram a lume novos títulos, mas também reedições, chancelando-os por vezes com uma espécie de logótipo que assinala esse meio século de criação literária. Assim têm feito a Horizonte ou a Porto Editora.

Logo em Junho de 2020, esta última casa editora colocou nas livrarias Luísa – As Histórias da Minha Vida (ao que parece um desafio lançado à autora) com ilustrações bem-humoradas, em registo adequado ao tipo de obra, e que incorporam, por vezes, fotos de Luísa. Assina este trabalho Ângela Vieira. 

Em formato grande (A4), 82 páginas, trata-se de um belo livro. Direi mesmo que um dos melhores livros infanto-juvenis publicados em 2020, pela sua singularidade e qualidade estética. Mas também pela sua excelência no plano formativo e informativo. 

Escrito num estilo fluente e coloquializante, muito vivo e pontuado por comentários, apartes, apontamentos humorísticos – no fim de contas o bem reconhecível estilo de Luísa Ducla Soares, no registo de contadora de histórias que lhe é tão próprio –, o texto divide-se em seis partes, cujos títulos poderão funcionar aqui como sumário da obra: «Olá! Cheguei ao planeta Terra!» é o primeiro; seguem-se-lhe «Adeus meninice! Entrei no liceu!»; Finalmente, adulta!», «Comecei a trabalhar!», «Vida de escritora!» e «Lembranças de família!». Neste último, a autora dedica um pequeno capítulo a cada um dos membros mais próximos da sua família: o marido, os dois filhos, a filha, as duas netas e os dois netos. Termina esta parte com o segmento «Fiz 80 anos!». 

Curiosa é a presença constante da exclamação no final de cada frase/título, forma justa de assinalar o amor à vida e o conseguimento pessoal que cada etapa constituiu – num percurso (que neste caso é também um discurso) onde há sempre naturalidade, modéstia e contenção, o justo tom, sem exibição, sem excesso narcísico, apenas a alegria de viver, conviver e criar, mesmo que enfrentando tremendos escolhos, a alegria de um conseguimento pessoal que nunca esquece a relação interpessoal e os afectos.

Não pretendo resumir aqui uma obra que é rica. Pelo facto precisamente de ser rica, preenchida, fecunda e criativa a existência de quem aqui se conta. Entre, por um lado, uma infância em tempo de 2.ª Guerra Mundial, repleta de encantos, aprendizagens, revelações e choques provocados pelo crescimento e pela socialização, e, por outro lado, uma vida plena de escritora, o leitor pequeno, jovem ou adulto (porque, acreditem, os adultos gostarão muito de ler este livro) testemunha, creio que divertida e entusiasmadamente, o processo de maturação da pessoa, da cidadã e da escritora. Alguém para quem os livros lidos e escritos foram sempre um refúgio e uma aventura, uma partilha e uma transmissão de cultura e de valores, uma forma de chegar aos outros; de alguma maneira também, um modo de intervenção na sociedade. 

Corajosamente, Luísa narra aqui, por exemplo, a sua prisão política e as humilhações que lhe foram infligidas (e lembremos que o seu marido, Mário Sottomayor Cardia, personagem também desta narrativa, foi preso pela PIDE quatro vezes, tendo, na última dessas detenções, sido «barbaramente espancado», com agressões que lhe provocaram «um descolamento de retina e outros males de que nunca por completo se recomporia», como escreve Manuel Alegre na sentida evocação «Breve sumário de Sottomayor Cardia» (Público, 7-12-2006, p. 10)). Eu diria que é especialmente significativo – sobretudo nestes dias de reascenso de novas formas de fascismo na Europa e designadamente em Portugal (com o Chega) graças à benção branqueadora de partidos do sistema, como o PSD e o CDS –, é significativo, repito, que Luísa Ducla Soares dê conta, mesmo que sumariamente, como aqui faz, do que foi a sua luta pela liberdade, pela democracia e pela justiça social. Fazendo-o, acrescente-se, no tom certo e adequado. E corajosa, também, por razões mais íntimas, a forma comovente como consegue evocar a curtíssima vida do seu filho Mico, falecido com um cancro. Vida breve, é certo, mas humanamente rica em lições para o futuro de quem aqui dolorosamente a conta, e para o futuro de quem venha a ler a obra. 

Deste modo, e mesmo em outras passagens pungentes e mais duras deste livro, se observa a arte de Luísa Ducla Soares para abordar na sua escrita para os mais jovens os chamados temas difíceis. Temas indissociáveis da própria pulsão da escrita, alimentada, no livro em apreço, pela pregnância do vivido. 

Não contarei, para não quebrar o encanto da revelação, as muitas anedotas e episódios de evidente comicidade que há na obra e que despertarão certamente muitos risos e sorrisos no leitor, seja qual for a sua idade. É por isso que, além de pleno de humanidade e do sumo das vivências de quem aqui se retrata, Luísa – As Histórias da Minha Vida é essencialmente um livro divertido. Mas um livro que, além disso, e como sempre sucede em Luísa Ducla Soares, interpela e faz o leitor pensar. 

Oxalá o saibam aproveitar devidamente não apenas quem ensina Língua Portuguesa mas também quem ensina História (quer no 1.º ciclo, em que prevalece a monodocência, quer nos ciclos subsequentes, sobretudo o 2.º e o 3.º). A obra de Luísa é mais um recurso nas mãos de quem queira promover a interdisciplinaridade de uma forma didacticamente inteligente. 

Por último, assinale-se outra das singularidades do texto: o facto de ser uma narrativa autobiográfica. Num ensaio seminal sobre a escrita autobiográfica, Le Pacte Autobiographique (1975), Philippe Lejeune enunciava os princípios básicos do reconhecimento de um discurso autobiográfico: a coincidência entre nome do autor e nome do narrador e a narração de uma vida em primeira pessoa. Se nos ativermos a este ponto de vista (já que o conceito de Lejeune viria a ser mais tarde profundamente discutido, rediscutido e reelaborado pelo próprio e por outros teóricos), Luísa – As Histórias da Minha Vida é exemplo de um escrito autobiográfico, que logo deste o título propõe o seu peculiar «pacto» de leitura. Ora, existindo diversos exemplos que poderíamos apontar – como Als ich ein kleiner Junge war, 1957, de Erich Kästner, traduzido para Português por Ilse Losa, em 1977, com o título Quando Eu Era Rapaz –, é pouco comum, na literatura para a infância e a juventude, sobretudo na portuguesa, este tipo de obras, assumidamente autobiográficas. Por isso, também neste aspecto, Luísa Ducla Soares, uma vez mais, inova. 

E digo uma vez mais, pois é inegável o seu contributo para a renovação da nossa poesia para a infância, para o enriquecimento da ficção científica na narrativa infanto-juvenil portuguesa, para o conto e o poema nonsensical de recorte fortemente humorístico. Como é inegável o seu concurso para uma aproximação crítica, mas cheia de humanidade, aos chamados temas difíceis e ousados na escrita para crianças e jovens.  

Que ninguém perca, por isso, a leitura de Luísa – As Histórias da Minha Vida. Um livro imprescindível em qualquer biblioteca infantil, familiar e escolar.

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)