A escrita de Papiniano Carlos (n. 1918) sempre se deixou cativar pelo que existe de assombroso na marcha evolutiva do Homem ao longo da História, esse pedregoso caminho que atravessa milénios. Tão antigo que quase se pode dizer ter começado antes da própria Pré-História, antes do Homem ser Homem. Assim se entende a breve alusão ao réptil voador, remoto antepassado do animal humano, que encontramos na abertura do poema dramático Uma Estrela Viaja na Cidade (Porto: Trinta por Uma Linha, 2010). Uma composição que, inicialmente publicada em 1958 1, não como texto para crianças, foi assumida, na presente edição, como obra susceptível de ser lida por esse público e objecto, assim, do necessário enquadramento paratextual: entre outros aspectos, o formato de álbum com capa dura, curtos segmentos de texto por página, em caracteres de razoável tamanho, e imagens a cores assinadas por Elsa Lé, ilustradora de livros infantis.
Constituindo embora o início do livro, a referência ao crocodilo é o desfecho de uma das histórias contadas pela personagem do Poeta e funciona como ponto de arranque para, através de um diálogo entre o Menino, a Jovem, o Jovem, a Mulher, o Velho, um Coro e o próprio Poeta, se percorrer de modo sumário a trilha da humanidade, os seus extraordinários conseguimentos e conquistas que, ao longo dos séculos, foram alternando com os maiores desastres e tragédias colectivos.
O Menino exclamará: «São lindas as tuas histórias, Poeta.». E este responderá: «São a História do Homem.». «A aventura humana…», dirá o Jovem; «A extraordinária viagem…», acrescentará a Jovem. E o Poeta completará a frase: «Que começou no protoplasma, há milhões e milhões de anos… (…) E não acabará tão cedo…».
Assim principia o diálogo que se estende ao longo das páginas deste livro ilustrado em aguarela, cujas imagens procuram acompanhar os picos dramáticos, as cenas mais eufóricas e a atmosfera poética do texto.
Em boa parte escrito em verso, e assumindo a forma de uma pequena peça para representação teatral, Uma Estrela Viaja na Cidade define diferentes dramatis personæ por meio das respectivas falas: o Poeta é o encantador dos outros homens, o desvelador do real, isto é, do que a concretude das coisas não desvenda à primeira vista. E, por isso, se torna personagem perigosa para os que representam o status quo, a opressão, a violência. Com a sua visão do mundo e da História, uma visão sempre lúcida, humanista e poética, o Poeta ajuda os seus semelhantes a sonhar um mundo novo. Um sonho que o Velho, mais pessimista, nunca partilha, até, quase no final e perante a violência, parecer colocar-se ao lado do Poeta, quando este está prestes a ser encarcerado. A visão do futuro repousa, sobretudo, no olhar deslumbrado e nas palavras do Menino; e a determinação em lutar por uma outra cidade anima, em especial, o Jovem e a Jovem. A esta última personagem e à Mulher cabem os discursos de exaltação do amor. Nas vozes de um Coro que comenta as outras falas, ecoam os anseios de quase todas estas personagens, mas emergem também as necessárias explicitações factuais – as estritamente imprescindíveis – para se entender o que está em causa neste breve entrecho. Escutemos um segmento inicial, em que é evocada a gesta do Homem, a um tempo exaltante e trágica:
«POETA – Vocês já sabem, amigos, que as aves fizeram ninho no motor dum avião?
O JOVEM – Veio no Jornal…
VELHO – Eu li.
POETA – Aí está a maravilha, o sinal dos barcos que chegam na aurora…
MULHER – Explica-te.
VELHO – Não entendo.
POETA – Perguntai-o a este menino. (Aponta-o). Tu o sabes,
sim, tu o sabes, que és ainda puro para o entenderes.
MENINO – São os novos tempos que chegam.
POETA – Isso, os tempos cobrindo de primavera a cidade.
VELHO – Odeio a cidade.
MULHER – Amo-a e odeio-a.
MENINO – Eu quero outra cidade.
O JOVEM E A JOVEM (A uma voz) – Queremos outra cidade.
CORO – Outra cidade. Outra cidade.
VELHO – E quando? Quando?
POETA – Os homens construíram a cidade, construíram-na,
ergueram-na sobre os ombros com cimento.
O JOVEM – Ferro…
A JOVEM – Pedra…
MENINO – Flores…
VELHO – Sofrimento inenarrável…
MULHER – Rios de lágrimas…
POETA – E ansiedade sem limites…
VELHO – E para quê? Para quê?
POETA – Construíram-na arrancando as penas das asas
do seu sofrimento, a carne torturada
do seu próprio coração…
VELHO – E para quê? Para quê?
POETA – Ergueram templos…
A JOVEM – Estátuas, pirâmides…
POETA – Construíram portos, estradas, barragens…
O JOVEM – As máquinas…
VELHO – E túmulos para se esconderem da morte…
POETA – Criaram a arte, a filosofia, a ciência.
VELHO – Venceram acaso o sofrimento?
POETA – Lutam contra a morte e o sofrimento,
domesticaram as feras, venceram os monstros.
VELHO – Pobre D. Quixote!
POETA – Eliminaram terríveis micróbios, inventaram a anestesia.
MULHER – O parto sem dor.
O JOVEM – Inventaram o cinema.
A JOVEM – A rádio e a televisão.
VELHO – Os impostos e a lei…
MULHER – A justiça…
POETA – A liberdade…
VELHO – E a opressão.
POETA – Construíram barcos e aeronaves,
dominaram as forças da natureza…
O JOVEM – O fogo…
A JOVEM – A electricidade…
POETA – Cindiram o átomo…
VELHO – Recriaram os infernos…
CORO – A guerra atómica! A guerra atómica!»
É justamente neste passo, e em alusão ao final da Segunda Guerra, que se evocam os terríveis efeitos da bomba nuclear, num segmento de feição mais lírica que traz à memória o célebre «Llanto por Ignacio Sánchez Mejías», de Federico García Lorca, uma das vozes que mais influenciaram poetas da geração de Papiniano Carlos («POETA – Que é feito de Omachi / que estava colhendo flores no seu jardim, / CORO – às 9 e 15 da manhã? / VELHO – Onde foi Iyeyasu que estava matando a fome, / comendo o seu arroz, / CORO – às 9 e 15 da manhã? (…)» ).
Na ilustração de Elsa Lé, a imagem de massacre e destruição encontra correspondência nos tons de cinza do cogumelo nuclear, contrastantes com as cores dominantes do resto do livro e das guardas (vermelhos e rosas em profusão, amarelos e laranjas, roxos e azuis). E, após a referência à crueldade dos Homens (escravização, assassinatos, destruição d’«as vozes do amor e da esperança»…), surge no texto, com naturalidade, a nomeação da figura de Cristo, não uma menção beata, hipócrita ou mesmo metafísica, mas sim a recordação de um d’«aqueles que têm ajudado a semear a primavera no coração dos homens». Uma alusão que opta, e bem, pela moldura poética e intertextual, parafraseando o famoso «Hino de amor» (um poema para crianças) de João de Deus, incluído na sua não menos famosa Cartilha Maternal, de 1885.
Às disfóricas representações da morte e da guerra (a composição de Papiniano Carlos afirma-se também como um manifesto poético em prol da paz) sucedem-se, no livro, as eufóricas imagens do amor e da fecundidade da mulher (veja-se a décima primeira ilustração de Elsa Lé) como garante de um futuro para a humanidade («Através de vós, frágeis mulheres, viajam os barcos do futuro. A cidade constrói-se no fundo de cada um de nós, mas sobretudo, no mais fundo do vosso ventre.» – dirá, a dado momento, o Poeta).
Ora o amor, bem como a esperança, logo a seguir convocada pelo Coro, revelam-se perigosos para quem os encara como pilares do que de melhor existe na condição humana. Daí a surgirem os «homens de rosto metálico» (também eles marcados pelo tom cinza), que nos trazem à memória todas as polícias políticas de má memória, é um ápice. Mas, de imediato também, a prisão do Poeta convoca a solidariedade de todos os que antes dialogavam com ele e, com ele, aprendiam a sonhar um mundo melhor. E, nesse preciso instante, o céu da cidade é atravessado por uma estrela em viagem (símbolo eufórico de uma radical mudança no curso das coisas), como que vigiando o destino dos cidadãos, provocando um «clarão espantoso» e, finalmente, a fuga dos «homens de rosto metálico».
Num texto em que são detectáveis elementos temáticos, ideológicos e estilísticos próprios do Neo-realismo, pontuado pela exclamação e por expressivas metáforas e símbolos, cujo alcance é potenciado pela policromia das ilustrações (os «barcos» representam, como as próprias palavras do Menino e do Poeta evidenciam, «os novos tempos que chegam», os tempos «cobrindo de primavera a cidade»), a mencionada estrela, que ilumina o lugar dos homens, surge como um elemento simbólico mais. E os sentidos inerentes ao seu aparecimento no espaço dramático são desvendados, até certo ponto, pelas próprias falas das personagens: «A JOVEM – Olhai! Olhai! Esta árvore está toda florida! // POETA – É a primavera que chega… // CORO – A primavera! A primavera! // POETA – Nas árvores, na cidade e no coração dos homens.»
Vivemos tempos de negrume económico e social, em que os sinais de retrocesso civilizacional afectam, cada vez mais, as pessoas de bem, as que apenas sabem e podem viver do seu trabalho; são dias também de militarismo, de guerra no Afeganistão, no Iraque, na Palestina, em África, dias em que importa manter viva a lucidez, a esperança, certa atitude de ruptura, buscando um rumo radicalmente diferente daquele para onde nos querem empurrar. É, por isso, que o livro Uma Estrela Viaja na Cidade ganhou particular actualidade. Muito gostaria, pois, de o ver lido e representado em muitas e muitas escolas deste país.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)
Nota
1 A obra foi primeiramente editada numa separata da revista literária Bandarra, cuja publicação foi iniciada em 1953 e teve direcção de António Navarro e, depois, de António Rebordão Navarro.
Procurando enquadrar periodologicamente Uma Estrela Viaja na Cidade, recordo as palavras de Miguel Falcão a propósito desta obra e de outras igualmente representativas da literatura dramática neo-realista: «Embora, na opinião de alguns estudiosos do Neo-Realismo, os anos 50 (sobretudo a sua última metade) correspondam já à “agonia” do Movimento, o historiador de teatro José Oliveira Barata não hesita em afirmar que é nessa década, precisamente, que se verifica a sua “principal produção” dramática (1999: 17n). Às obras (…) [de Alves Redol, Manuel da Fonseca, Luís Francisco Rebello, Romeu Correia, Mário Braga, etc.], acrescentamos as peças de outras figuras do Movimento que se destacaram no romance ou na poesia, mas que também experimentaram a escrita dramática, entre as quais: A salva de prata (1950) e, já na década seguinte, O homem da cadeira de rodas (1968) de Sidónio Muralha; Sombras (1951) de Correia Alves; e Uma estrela viaja na cidade (1958) de Papiniano Carlos.» (Miguel Falcão. «A atracção multiforme pela cena», in Batalha pelo conteúdo: Movimento Neo-Realista Português. Livro/Catálogo de Exposição Documental. Vila Franca de Xira: Museu do Neo-Realismo, Outubro de 2007, pp. 220-243 (disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qk_9DwTHzfIJ:www.fl.ul.pt/centros_invst/teatro/pagina/Publicacoes/artigos2008/miguel%2520falcao.htm+%22Uma+Estrela+Viaja+na+Cidade%22&cd=28&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=pt (acedido em 7-1-2011).)