quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

‘Ana-anA’, de Ilse Losa, com ilustrações de Manuela Bacelar: uma obra ao serviço da inteligência e da sensibilidade

    

Guardo nos meus arquivos algumas das muitas crónicas que Ilse Losa publicou em diversos jornais, como o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto, o Diário de Notícias, o Público, para apenas citar quatro. Uma delas veio a lume no Jornal de Notícias, provavelmente na década de oitenta do século XX, mas, por esquecimento, não registei na altura a data em que saiu. (A propósito: aguarda-se a recolha e publicação em livro das crónicas da autora, dispersas por numerosas publicações periódicas. São, é um facto, muito relevantes quer para a compreensão da personalidade marcante de Ilse quer para um conhecimento aprofundado da sua escrita, da sua poética e do seu tempo). O texto a que me refiro intitula-se “Janelas abertas” e nele se pode ler: 

Não faltam pessoas com vontade de limitar a literatura infantil a esquemas determinados. Assim umas entendem que as crianças devem apenas ler histórias com um conteúdo realista ou de intervenção social; outras, por sua vez, são da opinião de que só o puro imaginário se ajusta ao mundo infantil; outras acham que as crianças devem não ser inquietadas, que lhes convém acreditar num mundo intacto, cor-de-rosa e, por isso, defendem uma literatura levezinha, sem problemas, que não entristece e, na melhor das hipóteses, provoca o riso; ainda outras indicam, como única literatura infantil válida, a didáctica que, em seu entender, abre caminho para um melhor conhecimento do mundo. E ele há também quem ache que livros para crianças são uma inutilidade. || Pergunto-me por que razão não se traçam tais esquemas rígidos quanto à literatura para adultos. Por que não se nos propõe lermos exclusivamente isto ou aquilo sem perdermos tempo com o resto…

Neste seu artigo, depois de discorrer sobre a diversidade existente no mundo dos livros para crianças, de valorizar o acesso dos mais novos quer a literatura nacional quer a literatura estrangeira, e de defender que seja salutar interessarem-se também por certas obras da literatura dita para adultos, Ilse Losa, em conformidade com o título da crónica, conclui: “Deixemos, portanto, portas e janelas abertas para que essa gente nova possa livremente ir em busca dos mundos da arte e do conhecimento.”
Esta sensata e saudável apologia da diversidade de leituras a proporcionar à criança e ao jovem, a autora de O Mundo em que Vivi aplicou-a à sua própria criação literária e, por isso, nela coexistem tanto narrativas de orientação realista, como O Senhor Pechincha (1993, inicialmente intitulado “Mosquito e o sr. Pechincha” e editado em 1966), O Quadro Roubado (1977) ou O Expositor (1983, publicado, uma década mais tarde, sob o título Miguel, o Expositor), como histórias de tipo fantástico, como Viagem com Wish (1983) ou Silka (1984). 
Ana Cristina Vasconcelos de Macedo é autora do mais aprofundado estudo publicado até ao momento sobre a escrita de Ilse Losa para a infância e a juventude, incluindo obras de crossover fiction como O Mundo em que Vivi. É certo que as do primeiro tipo que mencionámos, às quais Ana Cristina Macedo chamou (2018: 117) narrativas de contornos realistas, são talvez em maior número e foram sobretudo publicadas entre 1949 e os anos oitenta, espelhando, em particular as primeiras, certa ligação da escrita de Ilse ao movimento neo-realista. Já as do segundo tipo, segundo a mesma autora (Macedo, 2018: 231), ou seja, as narrativas de contornos fantásticos ou do imaginário, foram sendo editadas, maioritariamente, a partir de 1980.
Publicado pela primeira vez em 1986, na colecção ASA Juvenil, e reeditado em 2018, Ana-anA ou Uma Coisa nunca Vista (Afrontamento, 2018) enquadra-se pois no segundo conjunto de contos e novelas. Por outro lado, inscreve-se na categoria das histórias de temática natalícia, de tão enraizada tradição na literatura da infância (E. T. A. Hoffmann, Hans Christian Andersen, Charles Dickens, O. Henry, L. Frank Baum, Sophia de Mello Breyner Andresen…) e de tendencial bom acolhimento por parte desse público. 
Em Ana-anA existe outro traço discursivo relevante: o facto de, começando com uma fórmula de abertura – destinatário (“Mico, querido irmão:”) e data –, estar redigido como uma carta que Ana dirige ao seu irmão, no dia 20 de Dezembro, na sequência de uma longa viagem, na verdade curta – pois tudo sugere que se trata de um sonho acordado. Nessa espécie de viagem mental para um mundo outro, mágico, Ana fica a conhecer, além do professor Unapedra (com o seu computador chamado doutor Mafona) – figura de sábio que gostava de terminar o seu dia tocando violino no alto de uma árvore –, Dona Calíope, misto de “musa, fada, bruxa” (p. 32) e uma série de animais, entre o personificado e o mágico, como a girafa Greta e a zebra, ambas falantes, além doutros bichos como o cão Calef (há quase sempre cães nas histórias de Ilse), a gata Zuzu de Dona Calíope, e o macaco Félix, porteiro bem-falante da grande casa, com a sua cartola mágica, herdada de Fumanchu, mestre dos prestidigitadores. 
A viagem principia na rua do Sol (não é a única alusão portuense no livro, outra há, a dada altura, ao velho cinema Chaplin, em Leça da Palmeira, conquanto acreditemos que podem não ter passado de meras referências inspiradoras). Aquela via é “uma rua estreita” com “de cada lado, casas tão altas que o sol nunca lá chega a entrar (…) por vezes acontece com as ruas o mesmo que com as pessoas: o nome não lhes assenta. É assim nesta Terra, nem tudo bate certo.” (p. 3). Esta frase, indiciadora do assombro que se seguirá, é escrita por Ana na sua carta ao irmão, para quem procurava, nas lojas, uma “linda prenda” de Natal, “alguma coisa fora do comum” (p. 3). Essa “coisa nunca vista” (subtítulo da narrativa), essa prenda especial e fraterna acabará por ser a própria missiva – e quem resiste às lindíssimas e divertidas ilustrações-prolongadoras-da-história de Manuela Bacelar, nas páginas 2 e 45, de uma menina divertida e sonhadora (a última), e do seu irmão mais novo, leitor sôfrego da carta, ou seja da aventura vivida/imaginada por Ana, como se o prodígio desta constituísse elemento impulsionador da própria leitura. 
Existe, por conseguinte, uma estrutura triádica em Ana-anA: 1. A heroína encontra o “Pai Natal-Só-Um” (um Pai Natal a sério e não uma imitação como a da montra da loja dos brinquedos); 2. viaja com o Pai Natal até uma terra e um casarão estranhos e mágicos (cena com os animais, episódio com o sábio professor Unapedra, episódio com Calíope); 3. o Pai Natal parte de helicóptero para a sua missão e, após troca de palavras com Félix, dá-se o mágico regresso de Ana, “num fechar e abrir de olhos” (p. 46) – atente-se na ordem dos verbos – à rua do Sol e, por fim, o retorno a casa, onde a história em forma de carta é contada.
No início (e num texto que contém breves alusões intertextuais a obras igualmente associáveis ao maravilhoso como o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, a Sereiazinha, de Andersen, e as Aventuras de Pinóquio de Collodi), a cena do encontro faz lembrar Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, tal como outros elementos mais adiante no texto: Ana olha a montra da loja de brinquedos, dir-se-ia um espelho; “atordoada” com os “gestos repetidos” (p. 4) do Pai Natal de plástico, é surpreendida pela voz do verdadeiro Pai Natal. Está, pois, no limiar do mundo segundo, onde vivem as criaturas mágicas mencionadas, e passa para o outro lado. O veículo transportador, que efectua a transição definitiva do mundo primário para esse mundo segundo, é uma simpática Dona Elvira de antanho, conduzida, aos solavancos, pelo Pai Natal.
Pelo meio do texto, ou melhor, nas suas entrelinhas, várias são as críticas que podemos ler: primeiramente, a uma sociedade que, no Natal, usa e abusa dos Pais Natais de imitação, o mesmo é dizer, a uma sociedade consumista que vive de aparências. E por isso o Pai Natal amigo de Ana é o verdadeiro Pai Natal, ou seja, Nicolau: “há terras onde toda a gente assim me chama por entender que sou esse Santo Nicolau que, como eu, tem séculos de idade. Também houve Papas, Duques e Czares assim chamados. É que Nicolau é nome bonito e soa a homem inteligente.” (p. 8). Isto declara o próprio Pai Natal. Na mesma lógica, a “coisa nunca vista” que Ana procurava para o irmão não será um brinquedo especial, um objecto industrial, mas sim uma carta, escrita por si, um gesto repleto de imaginação, graça e afecto, ou seja, um verdadeiro passaporte para o sonho e para o coração da própria Ana. 
Apraz-me encontrar aqui uma segunda crítica – algo pioneira, se pensarmos que foi escrita em 1986 – ao endeusamento da tecnologia, em especial, dos computadores, que desgraçadamente tem caracterizado a sociedade pós-industrial. Recordemos o que o sábio Unapedra (que vive rodeado, não de microscópios, tecnologia, mas sim de livros) ensina à jovem Ana: “– O Doutor Mafona, o grande sabedor, não tem coração. // – Mas nós podemos amá-lo, ou não podemos?”, pergunta Ana. Responde o professor: “– E porque não? Mas só seremos correspondidos se ele for concebido com amor e para dar amor. É que o Doutor Mafona não passa de eco de quem o planeou.” (pp. 28-29).
Ana (sublinhe-se, no título, a manipulação gráfico-semântica do nome: Ana-anA) – a menina que, por ter um nome-capicua, ou seja, um nome palíndromo, como lembra Ana Cristina Macedo (2018: 287), traz sorte ao Pai Natal, é ele próprio a reconhecê-lo –, vê-se assim exposta a uma espécie de pedagogia dos afectos que não fica por aqui. Jovem e confrontada com uma observação de Nicolau, dirá: “– Sinceramente, senhor Nicolau, não me parece que a inteligência se meça pelos anos de vida.” (p. 9). A questão “A inteligência mede-se pelos anos de vida?” será pois colocada quer a Unapedra quer a Calíope. O primeiro responderá com estas palavras, na visão de Ana, “bonitas” e “atinadas”:

“(…) longos anos de vida revertem em experiência, dão ocasião para se verem muitos lugares, conhecerem-se em abundância gente, animais, plantas e obras realizadas pelos homens. Mas quem, em longos anos de vida, não aprendeu a ler nos corações dos homens, a compreender a língua dos animais e o cheiro das plantas; quem não conseguiu ouvir a música nas palavras, nas cores, no rumorejar das águas e das árvores, pouco ganhou com a longevidade, pois nada de verdadeiramente válido saberá transmitir aos outros homens.” (p. 30).

Já a “musa-fada-bruxa” Calíope (na qual ecoam naturalmente Pseudo-Apolodoro, Virgílio, Ovídio…), a que fala por invulgares provérbios, como uma maga, terá, por seu lado, o condão de fazer Ana – esforçadamente e sob tensão – exprimir o seu próprio pensamento nestes sensatos termos: 

Acho que o conselho dos velhos tem valor. Ao conhecermos as suas experiências podemos corrigir uma data de erros. É como diz o meu pai: os mestres fazem-se aprendendo ao longo de muitos anos. Mas perdoem-me, Dona Calíope e Nicolau, não creio que a inteligência se meça apenas pelos anos de vida. Conheço pessoas que ainda não são velhas, mas inteligentes. Tenho companheiros de turma inteligentes – não te envaideças agora! – o meu irmãozinho Mico também é inteligente. (pp. 37-38). 

No fim de contas, a carta de Ana não descreve apenas as “lições” aprendidas e o modo como o seu olhar sobre o mundo se alargou e aprofundou, ela configura também uma educativa e afectuosa mensagem dirigida ao irmão mais novo, para quem a heroína se revela já, de algum modo, mestra de vida.
Em Ana-anA, Ilse Losa capricha nesta ou naquela comparação, nesta ou naquela metáfora mais original, nesta ou naquela tirada humorística mais especiosa, mas é nos diálogos, vivíssimos e divertidos, nomeadamente com Nicolau, o Pai Natal, que toda a graça da narrativa, plena de humor e de jogos em torno do que é lógico ou ilógico, surpreende o leitor ou leitora, ao mesmo tempo que o/a confronta com reflexões intemporais (e, por isso mesmo, actualíssimas), como se, já numa fase final da obra, algo de significativo sobre a sua mundividência quisesse Ilse Losa deixar em herança aos vindouros. E com tudo isto e mais ainda se tece também a vivacidade da própria enunciação narrativa, assente, sobretudo, no esquema epistolar que estilisticamente a condiciona. Virtualmente dialógico, o discurso faz com que irmã conte a irmão, em registo familiar, não raro interpelador, uma história que aspira a ter também o dom de o conquistar para a leitura1.
As belíssimas ilustrações, desenhadas e pintadas, de Manuela Bacelar caracterizam-se, em Ana-anA, e em consonância com o conto, por um apurado sentido de humor, bem característico da artista, pela expressividade dos rostos e por um certo gosto pela caricatura e pela hipérbole que cativam o/a leitor/a. A estes traços se juntam o cuidado na composição de cada imagem e a sempre conseguida combinação de cores e tonalidades. Um conjunto visualmente rico, capaz de criar um mundo com vida própria, em que o cómico e o lírico coexistem de forma particularmente tocante.

Nota

1 Para uma análise pormenorizada, informada e arguta de Ana-anA, leia-se Ana Cristina Vasconcelos de Macedo (2018: 282-294).

Referência bibliográfica

Macedo, Ana Cristina Vasconcelos de (2018). A Escrita de Ilse Losa para a Infância e a Juventude. Porto: Tropelias & Companhia.


José António Gomes

Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais (IELC) do INED da Escola Superior de Educação do Porto