segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O Barco de Papel, de Eugénio Roda e André da Loba

O Barco de Papel (2013), livro singelo publicado com a chancela da editora aveirense Bags of Books e com o gosto especial do seu editor, Francisco Vaz da Silva, uma iniciativa apoiada pela Câmara Municipal de Aveiro e pelo Projecto Rampa, nasce do feliz encontro entre as palavras literárias de Eugénio Roda e as ilustrações de André da Loba.

Pertencentes a uma nova geração de escritores/ilustradores que tem contribuído para a renovação da literatura portuguesa de potencial recepção infanto-juvenil, importa talvez aqui deixar, antes de tudo, algumas palavras acerca dos co-autores desta obra. 

Eugénio Roda (pseudónimo) – ou Emílio Remelhe (Barcelos, 1965) – lecciona na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e na ESAD (Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos) e o seu livro O Quê Que Quem. Notas de Rodapé e de Corrimão, ilustrado por Gémeo Luís, foi distinguido com o Prémio Nacional de Ilustração em 2005. Um outro, Azul, Blue e Bleu (Edições Eterogémeas, 2009) foi nomeado pela SPA para o Prémio Autores 2010. De Eugénio Roda – ou também de ER, Estêvão Roque, Ena Romero e Elliot Rain – conhecemos, há anos, os múltiplos resultados de uma actividade criativa desenvolvida em torno das letras1, mas também à volta das imagens ou da pintura, desenho, ilustração e cenografia. Com efeito, não têm sido raras as vezes em que, palavras e imagens, umas e outras, se desafiam, se motivam e se alimentam mutuamente, 


1. quer quando são nascidas das mesmas mãos ou da sensibilidade do próprio Emílio (Eugénio), como acontece em Trapalhadas Fantásticas. O Verdadeiro Destino do Senhor Adiposino (Edições Eterogémeas, 2005);


2. quer a partir de textos da autoria de outros escritores, como João Pedro Mésseder, por exemplo, em À Noite as Estrelas Descem do Céu (Campo das Letras, 2002), ou de um conjunto distinto de poetas como Filipa Leal, Jorge Sousa Braga, Luísa Ducla Soares ou Matilde Rosa Araújo, por exemplo, na colectânea Com Quatro Pedras na Mão. O Porto Cantado por Crianças e Jovens (Deriva, 2008);  


3. quer quando das palavras do Emílio nascem imagens, como se observa nas ilustrações que Gémeo Luís e Cristina Valadas têm inventado para textos seus, como são os casos de Ssschlep (Edições Gémeo, 2006) e Irmã(o) (Edições Gémeo, 2008);


 4. quer, ainda, quando escreve tendo como motivo inspirador as ilustrações de outros artistas plásticos, como sucede, por exemplo, 


a) com a micronarrativa “Toca a Roer”, redigida a partir de um desenho de Alberto Faria e publicada no catálogo da exposição A Casa dos Sonhos (Fundação Byssaia Barreto, 2003); 

b) com As Aventuras Domiciliárias II A História do senhor Inquilino Caseiro, livro composto por desenhos de Gémeo Luís, comentados por Estêvão Roque (Eterogémeas, 2002); 

c) ou, ainda, no grande livro (grande nas suas diferentes acepções) que assinou, também precisamente, com André da Loba: Pensamientras / On Thoughts (Edições Eterogémeas, 2012). 


É, aliás, logo no início deste livro, Pensamientras / On Thougths que encontramos registada uma das expressões que, em nosso entender, melhor poderão reflectir aquilo que de especial possui a escrita de Eugénio Roda/Emílio Remelhe. Efectivamente, os textos deste autor substantivam aquilo que designa como o “pensar revira-revoltas”, aquilo que, em última instância, é uma escrita poética, da família do discurso das crianças (sempre feito de ginásticas e de acrobacias com palavras e sons), de um registo ou de uma maneira de pensar que se alegra e se dedica a olhar o mundo e os outros do lado que poucos vêem, mas que muitos ambicionam conseguir ver. 

André da Loba, natural da cidade de Aveiro, é um reconhecido artista – ilustrador, designer gráfico, escultor e animador –, com trabalho publicado/divulgado nacional e internacionalmente. Com vivacidade e uma agilidade criativa, que lhe valeram já o reconhecimento pela The Society of Illustrators NY, pela Communication Artes, pela Illustrarte ou pela Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha, entre outros, André da Loba é colaborador regular do New York Times e já ilustrou mais de uma dezena de livros infantis. Aliando a sua arte à escrita de Eugénio Roda – no já referido Pensamientras, por exemplo – ou de João Paulo Cotrim – em Querer Muito –, apenas para citar dois exemplos – André da Loba cria singularmente, num estilo com “assinatura legível e inconfundível”, que se demarca pela simplicidade das figuras, construídas a traços e contornos reduzidos ao essencial, mas raramente distantes de um impulso metafórico que provoca ou desafia o leitor, alimentando a sua curiosidade.    

A obra O Barco de Papel exemplifica, na verdade, muito do que acabámos de expor acerca da arte literária e ilustrativa dos seus co-autores.  

Ficcionalizando, com subtileza e sem imediatismos ou interpretações gratuitas, a temática da mobilidade/acessibilidade, O Barco de Papel guarda uma história na qual participam personagens anónimas, recriadas visualmente a partir de formas minimais, opção que, em certa medida, corrobora a ideia de universalização da mensagem veiculada. Num espaço-casa, cenário habitado por uma família e preenchido de “coisas” – tapetes, cortinas com rendas, portas e fechaduras, jarras com flores, estatuetas, móveis e estantes, por exemplo – coisas, dizíamos, que cingem a respiração, a vida fecha-se e o movimento livre e imprevisível de aviões de papel, nascidos de mãos infantis, frustra-se.

Mas o certo é que este pequeno herói «tentou, tentou, fartou-se de tentar. Bafejava os aviões, falava-lhes baixinho, gesticulava, rezava.» (Roda, 2013: s/p). Insiste e persiste, ganha seguidores – «Avós, tios, primos, noras, genros, sogras, filhos, irmãos, netos.» (idemibidem: s/p) e, por fim, muitos foram os que puderam esvoaçar «como pássaros recém-tirados do ninho» (idemibidem: s/p). Diz o livro que «Houve até quem inventasse acontecimentos só para voar mais alto. Nunca na casa tinha entrado tanto ar. Nunca se tinha visto tanta coisa, abaixo dos pés e acima da cabeça.» (idemibidem: s/p).

A acção arquitecta-se, assim, em momentos ou em etapas claramente diferenciados, correspondentes às sucessivas tentativas de voo dos referidos aviões e à sua impossibilidade. Tecido de gestos persistentes protagonizados por um rapaz, o enredo desenvolve-se, então, e conclui-se positivamente, apenas porque a capacidade infantil de sonhar/ambicionar e, muito especialmente, de impor a mudança “para melhorar o mundo” não tem limites. Na verdade, o voo não é aqui somente um acto físico de um leve avião de papel. É, acima de tudo e na sua essência simbólica, uma aspiração e uma libertação. E o avião, «rápido, delicado no seu mecanismo e difícil de manejar» (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 103), meio de partida da terra/evasão do terrestre, materializa, assim, a leveza, o sonho e a aventura.     

O próprio discurso é leve, leve como convém a uma prosa que em muito é poética, uma prosa «sem arestas objectivas e utilitárias» (Pimenta, s/d: s/p), que evidencia uma cadência especial. Para esse ritmo harmonioso contribuem, de forma determinante, a construção frásica, manifestamente simples e breve, a recorrência de formas verbais actanciais, o recurso preciso e “na medida certa” ao adjectivo, por exemplo, ou, ainda, à metáfora, aqui, em concreto, neste Barco de Papel, enquanto maneira de pensar e de viver, projecção imaginativa da verdade, ou “imagination in action”. Releiam-se, por exemplo, segmentos como: «E a casa arejou com a brisa das folhas, com a frescura das histórias.»; «A mãe sempre dissera que as novidades têm asas. Ora, se cada um se concentrasse numa boa novidade, conseguiria voar com ela.» (Roda, 2013: s/p).

A componente ilustrativa, contida na cor e nas formas, recria/revisita as principais linhas ideotemáticas e os momentos actanciais mais relevantes, assumindo particular significado, logo desde a capa e das guardas iniciais e finais. Com efeito, a ilustração da capa, revestindo-se de uma importante função catafórica ou antecipatória, sugere quer o movimento/a viagem, quer os meios que a poderão proporcionar – avião/barco –, também patentes, aliás, nas guardas iniciais (avião) e nas guardas finais (barco). Além disso e em última instância, o jogo que se celebra entre este dois elementos paratextuais (guardas iniciais e guardas finais) não deixa de substantivar (simbolicamente) o incipit e o explicit deste conto ilustrado – do avião de papel ao barco de papel: «Pai, e se fizesse um barco de papel?» (idemibidem: s/p), assim termina a história.

Concluímos, pois, sublinhando apenas que O Barco de Papel, de Eugénio Roda e André da Loba, é um objecto estético muito estimulante, um livro no qual, com uma admirável distância do literal, se elogia a vontade, o impulso, a capacidade, a liberdade de voar… «sem usar as escadas ou o elevador».  


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1 Tem livros publicados, por exemplo, na Campo das Letras, Caminho, Gailivro, Edições Eterogémeas, Porto Editora, entre outras.

 

Referências bibliográficas

 

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (1994). Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema.

PIMENTA, Alberto (s/d). «Prosa poética» in http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=399&Itemid=2(consultado no dia 21 de Fevereiro de 2014).

 

Sara Reis da Silva
Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho