quarta-feira, 27 de maio de 2020

Lengalenga de Lena, a Hiena, de Ana Luísa Amaral e Jaime Ferraz

Merece aqui referência um título novo de Ana Luísa Amaral – notável poetisa, ficcionista, ensaísta, que tem cultivado também o livro para a infância, caso do volume objecto desta nota de leitura.

A obra intitula-se Lengalenga de Lena, a Hiena (Edições Zero a Oito, 2019, col. Na minha rua). 

Servida pelas dinâmicas ilustrações de Jaime Ferraz, cromaticamente vibrantes mas de bom gosto, a autora constrói uma história divertida e sensível, trilhando os caminhos da metaficção e da metalepse. Centra-se numa hiena, Lena, e noutros animais, como a girafa, mas também em dois bichos oriundos «dos livros», isto é, da esfera (meta)ficcional. No texto, a contadora conversa com outra personagem (presume-se que infantil) e, neste registo dialogal em verso, fantasista e poético, vai tecendo/narrando a história da presença de Lena em sua casa e do regresso do animal à savana. 

A temática é cara à autora: a diferença, mas também a saudade das raízes e de um espaço, por assim dizer, materno e livre. Uma bela e divertida obra, em formato de álbum, para leitores iniciais, e que, como sucede com todos os livros infantis de Ana Luísa Amaral, se caracteriza por uma reconhecível qualidade no plano da construção discursiva. 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

domingo, 17 de maio de 2020

À noite as estrelas descem do céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia, de João Pedro Mésseder e Susa Monteiro

Resultado da refundição de uma obra anterior vinda a lume em 2002, À Noite As Estrelas Descem do Céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia (Edições ASA, 2016, 39 pp., ISBN: 978-989-23-3295-6), de João Pedro Mésseder, é um pequeno livro que, como se pode ler no subtítulo, pretende orientar crianças e jovens na iniciação à poesia, mais concretamente à escrita de um género tão particular como a forma breve japonesa haicai (mais frequentemente designada como haiku, por razões histórico-literárias que não cabe aqui esmiuçar, embora no Brasil seja comum o termo haikai ou haicai, ocorrendo, em alguns casos, o mesmo em Portugal).

Este livro é composto por três partes: a primeira secção – «Palavras introdutórias» – dedica-se à explicação do género haicai em termos históricos e conceptuais, finalizando com sugestões de leitura. Na segunda parte, encontramos uma sequência de poemas da autoria de João Pedro Mésseder, ordenados por ciclos sazonais (inverno, primavera, verão, outono), como é comum nas recolhas de haicais, a partir dos quais educadores, professores e mediadores da leitura podem experimentar práticas de escrita com crianças e jovens. Leiam-se dois dos poemas aqui incluídos:

Sobre as águas
cai o silêncio
e um lento navio é possível. (p. 22)

Da janela do comboio
vêem-se os campos de arroz –
coração iluminado. (p. 30)

Na terceira parte do livro, podemos desfrutar de uma conversa com o autor, poeta e tradutor de alguns poemas de Bashô. «À conversa com o autor sobre o haicai» suplementa as aclarações expostas nas «Palavras introdutórias». Note-se que nesta última parte o autor propõe mais alguns desafios ao leitor – o de completar haicais, utilizando palavras apresentadas aleatoriamente.

Considerável número de educadores e professores continuam, em Portugal, como em outros países da Europa, a não saber como introduzir a poesia na escola – a poesia afigura-se-lhes difícil e obscura e, por isso, creem não ser atingível pelas crianças. À Noite as Estrelas Descem do Céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia é um livro que, a somar ao valor poético intrínseco das composições que dão corpo à segunda parte, se apresenta como instrumento didático auxiliador de práticas de escuta, de leitura e de escrita poéticas nos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico. 

O ensino da língua materna não será efetivo se insistirmos no servilismo funcional e inequívoco das palavras e sua sintaxe, esquecendo que as palavras possuem uma espessura semântica que ultrapassa o uso pragmático da língua,e que a apropriação dessa polifonia garante o domínio da língua materna. A poesia é o lugar experimental em que a estrutura e o funcionamento da língua são confrontados com realidades poliédricas não dizíveis a não ser pela linguagem e experimentação poéticas. Disse Octavio Paz que a poesia não é incompreensível, é apenas inexplicável – pese embora a verdade contida na asserção do poeta, este livro de Iniciação à escrita de haicais convida-nos a desafiar essa «linguagem do corpo e do espírito, essa linguagem que se recria a si própria», ou seja, a poesia lírica, como a caracterizou o poeta, ensaísta e pedagogo francês George Jean.

Saliente-se ainda a interação que João Pedro Mésseder estabelece com os possíveis leitores deste «guia», instituindo-se, ao longo do texto, um efetivo ato conversacional. A aproximação discursiva com o leitor efetiva-se através de um discurso pedagógico-didático marcado pela relação de segunda pessoa, materializada em expressões interrogativas e explicativas como «Nunca leste um haicai?» (p. 1), «Explicar-te-ei o que é um haicai» (p. 2). Esta cooperação e dinâmica discursivas, para além de garantir com maior eficácia a passagem de conhecimentos, permite que o jovem leitor se autonomize nesta «iniciação à escrita de haicais».

Uma palavra final para a qualidade da concepção gráfica da obra, não obstante tratar-se de um pequeno volume, e, sobretudo, para as sugestivas ilustrações de Susa Monteiro, um dos nomes actualmente mais destacados no campo da ilustração em Portugal, responsável por livros como o belíssimo Sonho (2018) e Beja (2016) (este um guia, incluído na colecção «A minha cidade»), ambos editados pela Pato Lógico. De realçar a especial adequação das imagens ao espírito do texto e do próprio haicai. 

Ana Cristina Macedo
IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto) 

domingo, 10 de maio de 2020

Águas de Infância, de Nuno Higino: poesia de qualidade para todos

Um rio com seus esteiros? Um par de correntes irmãs? Sim, talvez se possa dizer que existem duas correntes na poética de Nuno Higino, a corrente das «águas de infância» e a das outras águas. Mas a segunda não exclui a primeira, são correntes contíguas e com vasos comunicantes, por assim dizer. A segunda está na origem dos livros de poesia de preferencial destinatário adulto. A primeira é a mater das recolhas de poemas de Nuno Higino, classificadas como sendo para a infância, mas que na verdade constituem poesia de reconhecida qualidade para todos, crianças ou adultos. O magnífico volume A Trote e a Galope: Poesia para a Infância (Letras & Coisas, 2017), com ilustrações de Alberto Péssimo, reúne, até hoje, o essencial dessa criação poética, que, não haja dúvidas, é das mais relevantes da nossa actual literatura para a infância e a juventude.

Para fazer uso da bela metáfora que o poeta achou para dar título a este seu livro de Novembro de 2019, direi que «águas de infância» muitos de nós talvez as tenham visto. Mas, para a peculiar voz que escutamos nestes versos, elas são as águas vistas «no estio que havia nas tardes de domingo» (belo e assonântico achado expressivo que lemos na p. 5 de Águas de Infância, Letras & Coisas, 2019). E, portanto, é como se, logo no poema inicial, o que empresta o título à obra, se indiciasse um desfilar de seres, de situações, de objectos, de estados de alma e de episódios convertidos em poesia – muitos deles, pode o leitor imaginar, tornados inesquecíveis por ter o seu brilho intenso iluminado as «tardes» de uma meninice. A do poeta? Não sei se isso importa muito. Uma meninice – isso sim interessa – sobretudo dourada; uma infância entregue ao desvelar emocionado do mundo. Esse mundo onde os rios, as árvores, as pedras, os bichos são como que expressões de um jardim edénico, em que também nos foi dado viver, mas que tratamos de forma incompreensivelmente cruel e desdenhosa. E abuso, a propósito, de um título feliz – mas por mim descontextualizado – de Frei Bento Domingues: «somos nós que nos expulsamos do paraíso» (Público, 17-11-2019, p. 9).

Considerando que, nos verdadeiros poetas (e Nuno Higino é um deles), tal infância se mantém viva ao longo da vida, pode-se dizer que talvez seja ela a matriz de diversos poemas. Por exemplo, «Viagens» (p. 22), em que um caixote de cartão, transformado em brinquedo, é evocado como veículo de muitas viagens, graças à imaginação do pequeno motorista ou viajante, um menino sonhador que não precisava de dispositivos electrónicos nem de jogos caros para saber brincar. Mas podiam apontar-se, nesta mesma linha, outras composições. Poemas, por exemplo em torno de animais, sempre tão queridos da infância (como «A passarada», «A formiga aventureira»», «O gato usa sapato?», «Um gato muito esquisito», «Mosquitos por cordas»…), poemas em torno de uma pedra que – como um vestígio prometaico – guarda em si a memória do fogo («A pedra tem fogo»), ou ainda em torno de um alegórico jardim, «lugar bom para crescer» e onde se observa «cada qual com seu direito» (p. 55), quer dizer, cada árvore, cada flor e demais plantas, como se de seres humanos se tratasse.

Não se pense, contudo, que este livro se esgota na temática vegetal e animal (e neste pequeno zoo poético o gato ocupa lugar privilegiado) – temática animal essa que talvez não passe, afinal, de uma expressão pobre e redutora, a esconder o facto de alguns destes poemas sobre bichos (mesmo quando fabularmente personificados, como em «O boi e o burro») possuírem a marca do cómico (de situação, de carácter, de linguagem) e serem extremamente divertidos. Isto é potenciado, aliás, por dois traços que distinguem Nuno Higino: a mestria das artes poéticas e a sua capacidade, o seu prazer, quase labial, em explorar o poder sugestivo da linguagem, designadamente a sonoridade, a música das palavras (por exemplo os nomes das aves, em «Passarada», e das árvores em «O crescer das árvores»). Os mais novos irão, estou certo, apreciar estes poemas de ritmos e musicalidade insinuantes, que, juntamente com as ilustrações de Joana Antunes, constituem objectos ideais para uma iniciação à poesia e à arte.

Aliás existe neste livro um certo lado pedagógico – faço questão de reabilitar este adjectivo –, nunca forçado, mas inteligente e sensível, apostado em abrir, e não em fechar, horizontes aos mais novos. Leiam-se, nesta óptica, as cativantes e educativas formas de iniciação artística que são os poemas «Como se faz poesia» (pp. 16-19 – belo tributo ao singular poeta brasileiro Manoel de Barros, espécie de pai de todas as poéticas para a infância), «Um livro, um amigo» (p. 44) ou ainda «A arte» (p. 49) – composições que certamente suscitarão reflexões tudo menos infantilizantes sobre aquilo que transmitem e sobre a pedagogia da sensibilidade que promovem.

Numa obra em que a mestria versificatória de Nuno Higino privilegia o heptassílabo e o pentassílabo, e em que, por vezes, a rima aposta em esquemas menos óbvios, como sucede na algo surrealizante «História com moral» (p. 32), é de notar ainda a exaltação da riqueza (palavra utilizada num dos poemas) existente nas coisas aparentemente simples, sejam elas elementos da Natureza (e a Natureza aqui é sempre porta aberta para o imaginário, fomentando o sonho criador), sejam um «sorriso de criança» (no texto com este título, p. 56) ou o próprio saber – aquilo que faz daqueles que o conquistam «reis do conhecimento» (v. poema «Rei do conhecimento», p. 12). E que preciosos pensamentos dirigidos aos mais jovens e a todos, sobre o modo de se ser humano e sobre o mundo, encerram alguns destes poemas num registo que nunca é simplista.

Embora as composições de Águas de Infância – ora de pura tonalidade lírica, ora em clave narrativa e/ou dialogal – sejam de assinalável beleza, esteticamente cativantes, quer do ponto de vista das ideias quer no indissociável plano das formas e das formulações imagísticas e outras (há passagens de música verbal da mais pura), trata-se de uma poesia que se não quer numa torre de marfim, abstraída dos males do mundo e da sociedade. E daí a presença de um veio de reflexão que não vira costas nem à pobreza e à desgraça humanas («Águas sujas de calamidade», p. 27) nem aos males de ordem ambiental que afectam o planeta: poluição dos oceanos, aquecimento global, destruição da vida animal («Diálogo por um mundo melhor», p. 28), nem à pulsão predadora do ser humano («Adivinha», p. 60, em que vagamente ecoa o Padre António Vieira do Sermão de Santo António aos Peixes).

Existem composições muito belas, e de grande intensidade lírica e poética, neste livro, como «Águas de infância» (p. 5), «O rio da minha vida» (p. 43), «O jardim» (p. 55), «Sorriso de criança» (p. 56), que me apeteceria ler em voz alta e comentar. Mas já me alonguei. Direi apenas, quase a terminar, que, tal como as outras, estas são exemplos de pura arte oferecida à infância dos difíceis e perigosos dias em que vivemos – e como anda ela precisada dessa arte, como andam a infância e a juventude necessitadas do melhor que se lhes possa dar a ler, a contemplar, a fruir de um ponto de vista estético. Obras que emocionem e eduquem para uma visão humanista, e que estimulem um pensamento crítico sobre o mundo.

Também por isso, não surpreende que tenha sido escolhida uma verdadeira artista da pintura e não apenas da ilustração, Joana Antunes, para a parceria com Nuno Higino neste livro. Também ela soube carrear para estas páginas as suas «águas de infância», muito belas e expressivas, sábias nas formas, no desenho e na combinação das cores, imprimindo ao conjunto um registo algo tropicalista, se me é permitida a palavra, muito pessoal e atractivo, acrescente-se, que me agrada e que faz do livro uma pequena festa de arte e de poesia. Este é, pois, um daqueles casos em que, como alguém dizia, o objecto livro funciona também como primeira galeria de arte que o olhar da criança ou do jovem pode visitar.

Que assim seja, pois. É que, como um dia escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta da afeição de Nuno Higino, «só a arte é didáctica».


José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

Águas de Infância, de Nuno Higino, pode ser adquirido em: https://letrasecoisas.com/loja/

domingo, 3 de maio de 2020

No dia da Mãe, um poema inédito de Violeta Figueiredo


                                                   

HORAS

Sou pequena, 
finjo que ainda não acordei.
"— Oito horas", chama minha mãe.
O quê? Não quero horas todas juntas,
às oito, às doze, às dez
de cada vez!!
"São horas", repete ela.
Ah, assim está bem.