domingo, 6 de março de 2016

Ainda e sempre, significante e significado: Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins, de José António Franco

Autor de títulos para o público adulto e de outros de preferencial destinatário infantil e/ou juvenil, como Versos de Respirar (2009), Rimas e Castanholas (2012) e a narrativa O Melro Envergonhado (2011), além de um livro, muito útil, de pedagogia poética, intitulado A Poesia como Estratégia (1999), José António Franco gosta de assumir a subversão da gramaticalidade como um dos seus modos de estar na escrita poética, que é, sem dúvida, o domínio da criação literária que mais o tem ocupado (1). E daí o «assins» do homoteleutico título do seu livro de Outubro de 2014, Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins (Tropelias & C.ª), e, por outra parte, a não utilização de maiúsculas e a ausência, ou quase ausência, de pontuação que normalmente caracteriza os seus poemas e que os torna despojados e porventura mais abertos à pluralidade das expressões/leituras orais e das interpretações possíveis – pelo menos, talvez assim os pretenda o autor. A juntar à circunstância de em geral não dar títulos aos textos – como faz também, por exemplo, Antonio García Teijeiro, escritor galego que igualmente destina a maioria dos seus poemas ao público infantil e juvenil –, diria que estas são algumas das formas que José António Franco tem de viver a liberdade criativa e subversiva que a poesia lhe proporciona e de desafiar os seus jovens leitores a partilhar essa mesma experiência. 

Os pianos, trombones, buzinas que marcam presença nestes versos, a juntar às referências a cantigas, colocam o livro sob o signo da música (2) e de outras manifestações sonoras (leia-se também, ou escute-se, o poema «crocita corvo malvado…» (pp. 52-54), a trazer à memória o famoso «Vozes dos animais» do oitocentista Pedro Diniz), como de igual modo o colocam nesse plano as «pandeiretas» e os «cornetins» do próprio título do volume, bem como o estival poema de abertura, convite ao desfrute da vida em geral e da vida das palavras em particular, de que a música, aqui referida, seria expressão metafórica ou simbólica: «vinde meus amigos / de todas as horas (...) // vinde / sem demora / há música já / oiro do trigo / lábios d’amora» (p. 5). Essa isotopia acústica surge em consonância com o acentuado perfil rítmico dos versos, com recurso a diferentes métricas – em que avultam o heptassílabo, o pentassílabo e outras medidas –, à rima recorrente, ao jogo das aliterações e assonâncias, aspectos por via dos quais José António Franco evidencia a sua linhagem, bem conhecida: a ligação às chamadas «rimas infantis» da tradição oral e popular (trava-línguas, lengalengas, rimas de jogos…).

Mas o poeta vai mais longe nesta exploração da dimensão sonora do signo e do poder de sugestão de sentidos que o significante, só por si, comporta; e é isso que, em parte, explica o gosto pelas palavras inventadas, em composições com algo de experimental, mas simultaneamente bem-humoradas, como «’scanun fósio microdésico…» (p. 19), «juliano piano adormeceu…» (p. 23), ou mesmo no trava-línguas «eu nunca jarritrolirochocolitarei…» (p. 31) – textos reveladores de uma lição bem aprendida quer em alguns mestres do nonsense e da invenção verbal, como Lewis Carroll, quer em experiências como a dos «Sonetos a Afrodite Anadiómena», de Jorge de Sena. 

Ousaria, aliás, afirmar que, em José António Franco, o nonsense – recorrente em vários dos trinta e cinco poemas deste livro – ocupa um lugar que não é o da mera gratuitidade, mas que tem de algum modo a ver com um pertinente propósito de educação linguística e literária. Ou seja, ao trazer para primeiro plano a festa sensorial da linguagem, ao apontar para a sua vibrante dimensão fónico-rítmica, mostra que a palavra pode ser fonte de prazer e de encantamento, independentemente da própria esfera da significação e da comunicabilidade. É como se dissesse (e isto sabem-no bem crianças e poetas): as palavras não se limitam a possuir uma função utilitária, servem também para com elas se brincar, existindo na língua uma dimensão lúdica intrínseca, irrecusável e um tanto subversiva da lógica comunicacional do universo dos adultos. 

Ilustrada, em Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins, com belas fotografias de António Rilo (dez, se contarmos a da capa), a escrita de José António Franco não se esgota, porém, na linguagem nonsensical e na dimensão fónico-rítmica da língua. O desafio metalinguístico a pensar a palavra e os seus usos, em poemas como «registei a palavra “casa”…» (p. 17) e «escondeu-se atrás da primeira palavra que encontrou…» (p. 6) – um dos principais textos do conjunto, desencantada visão também do isolamento do ser humano, da incompreensão e da incomunicabilidade –, o culto do poema breve ou brevíssimo, por vezes de cunho aforístico («para o sonho / toda a vida / para a morte / tempo algum», p. 20) são outros eixos a ter em conta neste livro. A eles forçoso é juntar o testemunho de um olhar que contempla e recria poeticamente o que vê – a vida natural e os elementos (animais, vento, mar, rio, sol, lua…) –, uma atitude reflexiva que equaciona a temporalidade, o impulso onírico e a viagem como desejo (leia-se o belo poema «da minha janela não vejo o mar…», pp. 21-22) e até certa dimensão de implicações sociais que se insinua ao de leve em poemas como «o passarinho a cheirar a vinho…» (p. 43) e «o saul só gosta de azul…» (p. 12).

Mesmo correndo o risco da simplificação, direi, a terminar, que tudo o que acaba de ser dito faz destes versos de José António Franco não apenas uma poesia que privilegia o significante, de carácter essencialmente lúdico, mas também uma poesia do significado, uma escrita que desafia o jovem leitor a pensar o mundo, a natureza, as palavras.


Nota

(1) Não obstante contar, na sua carreira, com duas distinções públicas na área do conto: o Prémio Alves Redol de Revelação, em 1990, e o X Prémio Joaquim Namorado, em 1993.

(2) Registe-se este surpreendente começo de um dos poemas: «de repente um piano desabou sob a tarde / desaçaimado desengonçado desteclado / feroz» (p. 25).


José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do Centro de Investigação e Inovação em Educação (InED) da ESE do Porto

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Os cúmulos de José Jorge Letria (texto) e José Miguel Ribeiro (ilustrações)

 Às vezes, é preciso recordar estes dados aos leitores adultos e partilhá-los com os leitores infantis. Repesquemos uma síntese biográfica de José Jorge Letria, disponível numa plataforma de aquisição de livros na Internet: «José Jorge Letria nasceu em Cascais em 1951. Estudou Direito e História e é pós-graduado em Jornalismo Internacional. Com dezenas de livros publicados em diversas áreas, foi distinguido com importantes prémios literários nacionais e internacionais. É um dos mais destacados nomes da literatura infanto-juvenil em Portugal e autor de programas de rádio e televisão. Está traduzido em várias línguas. Integrou, com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, entre outros, o movimento da canção de resistência, tendo sido agraciado em 1997 com a Ordem da Liberdade. Foi, durante oito anos, vereador da Cultura da Câmara de Cascais. É, desde Janeiro de 2011, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. É coautor, com José Fanha, de várias antologias de poesia portuguesa.»  
Os Cúmulos é um dos títulos para a infância que Letria publicou em 2006, em parceria com o conhecido ilustrador e realizador de cinema de animação José Miguel Ribeiro – para nós um dos raros artistas portugueses da ilustração que possuem o dom natural do humor nas suas imagens (como acontece, por exemplo com o grande Quentin Blake).
Publicado em 2006 pela Ambar, do Porto, em 2.ª edição graficamente renovada, Os Cúmulos continua sendo um dos mais divertidos livros do Autor. Só um ilustrador como José Miguel Ribeiro seria capaz de traduzir em imagens, com a arte e leveza que caracteriza este trabalho, o humor destes «cúmulos». Eles partem de um entretenimento popular muito comum, mas muito enraizado no universo dos jogos de linguagem, explorando naturalmente a hipérbole, por vezes também o paradoxo e o poder evocativo do próprio sentido literal de certas expressões:
«Era um mentiroso tão grande, tão grande que, para enganar os outros, só podia dizer a verdade.»
«Era um homem tão lento, tão lento que, mesmo quando corria sozinho, cortava sempre a meta em segundo lugar».
«Era uma senhora tão friorenta, tão friorenta que até aos pés das cadeiras calçava meias.»
«Tinha um sono tão pesado, tão pesado que um dia sonhou e caiu no andar de baixo».
«Era um homem tão estúpido, tão estúpido que só alimentava as galinhas com gelado para os ovos saírem frescos.»

Um volumezinho de reedição urgente, para dar a ler e para estimular o raciocínio dos mais novos. Um livro original também no plano discursivo/genológico, de um poeta culto e conhecedor das diferentes experiências poéticas que a literatura do mundo tem a oferecer, designadamente das que se cruzam com poéticas de raiz ou influência popular.

José António Gomes
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto