quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Quatro centenários a não esquecer: Rodari, Clarice, Sidónio e Castrim




Com o final deste terrível 2020, encerra-se um ano de quatro centenários merecedores de referência muito especial e prazerosa, para quem se interessa pela literatura em geral e pela escrita para a infância e a juventude, em particular. Pena que a imprensa cultural portuguesa, na sua obsessão presentista e no seu défice de pluralismo (para outra coisa não dizer), lhes não tenha dado a menor importância, se exceptuarmos o caso da notável escritora brasileira de que aqui também falaremos.

Comecemos pelo grande Gianni Rodari, nascido em Omegna, a 23 de Outubro de 1920 e falecido em Roma, a 14 de Abril de 1980. Prosador e poeta italiano, pedagogo e jornalista, Rodari é, sem sombra de dúvida, um dos mais relevantes autores da literatura para a infância e a juventude em todo o mundo, e a sua escrita reveste-se de importância internacional, visto ter sido, e continuar a revelar-se, extremamente influente. A circunstância de se encontrar amplamente traduzido para muitos idiomas, incluindo o Português, contribuiu certamente para tal facto e para a sua fortuna crítica.

Em Portugal foi inicialmente editado e bem traduzido pela Caminho (graças ao apuro de sensibilidade e inteligência desse editor de excepção, grande conhecedor do livro infanto-juvenil, que é José Oliveira) e também pelo Círculo de Leitores e pela Teorema. Hoje, é sobretudo a Kalandraka que tem publicado Rodari, dando preferência à edição de alguns dos poemas do autor e dos seus contos, em livros em formato de álbum, mas não só. Leia-se, por exemplo, Gelsomino no País dos Mentirosos (2020), Era Duas Vezes o Barão Lamberto (2020), Contos ao Telefone (2019), Inventando Números (2018), Baralhando Histórias (2011), O Que É Preciso (2011), todos editados pela Kalandraka, a que importa juntar algumas edições relativamente recentes, da Dinalivro, como Alice entre as Gravuras (2008) e Animais sem Jardim Zoológico (2020).

Grande pedagogo e director de suplementos de jornal dedicados ao público infantil, Rodari, que foi militante do Partido Comunista Italiano, antifascista e activíssimo defensor da paz e dos direitos da criança, tornou-se um inesquecível animador cultural do público infantil e um mestre da invenção, como comprova a sua criativa «introdução à arte de contar histórias», que dá pelo título de Gramática da Fantasia, editada primeiramente pela Caminho, em 1997 e, em 2017, pela Faktoria K de Livros. Uma obra que, além de ser uma divertidíssima e multifacetada lição de literatura e de criatividade, deve continuar a figurar em toda e qualquer bibliografia essencial da formação de educadores de infância, de professores do 1.º ciclo e de professores de Português, tanto do Básico como do Secundário. E isto para não falar em bibliotecários, em educadores sociais e em animadores e promotores da leitura.

A obra de Rodari balança entre o excelente e tocante (neo-)realismo do romance Pequenos Vagabundos(Caminho, 1986), sobre as vergastadas infâncias camponesas, operárias e marginais do pós-Segunda Guerra no norte da Itália, e o ludismo tanto verbal como de situações, a comicidade e por vezes o nonsense que é possível descobrir nos excelentes Contos ao Telefone – textos marcados pela literariedade e pela implicação intertextual, pela comunicabilidade com o potencial leitor, e pelo humor, num quadro de transbordante e divertida imaginação criadora e de um permanente espírito crítico. A escrita de Rodari – um inovador poeta e contador para a infância e um homem profundamente culto – diverte invariavelmente o leitor, e cremos poder dizer que faz de todos nós, crianças ou adultos, pessoas mais inteligentes, mais atentas ao mundo que nos rodeia e aos seus problemas (a guerra e a luta pela paz, a injustiça social, as ideias retrógradas, etc.) e certamente faz de nós seres humanos mais bem-humorados. 

Pela reconhecida qualidade e originalidade do conjunto da sua obra para a infância e a juventude, Gianni Rodari receberia, em 1970, o Prémio Hans Christian Andersen do International Board on Books for Young People – o equivalente, no livro infanto-juvenil, ao Nobel da Literatura.

Um escritor, pois, para ler em todas as estações, em todos os tempos e lugares. Tal como a grande Clarice Lispector, nascida em Chechelnyk, na Ucrânia, a 10 de Dezembro de 1920, e falecida no Rio de Janeiro, a 9 de Dezembro de 1977. Escritora de timbre inconfundível, marca, com a sua prosa cintilante de estranheza e prenhe de pequenas / grandes epifanias, a literatura para a infância e não apenas os seus magníficos romances, contos e crónicas «para adultos». É o que sucede em livros belos e interpeladores como O Mistério do Coelho Pensante (1967), A Mulher que Matou os Peixes (1968), A Vida Íntima de Laura (1974), Quase de Verdade (1978) e Como Nasceram as Estrelas (1987).

Ao Brasil de Clarice ficou também ligado para sempre o português Sidónio Muralha, nascido em Lisboa, a 29 de Julho de 1920, e falecido em Curitiba, a 8 de Dezembro de 1982. Escreveu poesia, prosa (ficção e ensaio), bem como literatura para a infância. 

Sidónio Muralha é reconhecido como um dos pioneiros do movimento neo-realista em Portugal, com a publicação de Beco, logo em 1941, na colecção Novo Cancioneiro (onde editaram poesia os jovens Namora, Carlos de Oliveira, Cochofel, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado e outros), tendo iniciado a sua incursão na literatura para os mais novos com o inesquecível e, à época, profundamente original e tematicamente ousado Bichos, Bichinhos e Bicharocos, de 1949 (Francine Benoît musicaria alguns destes poemas, quase todos narrativos, que Júlio Pomar ilustrou).

Muralha foi um dos presentes nos famosos Passeios do Tejo (anos 40), organizados por Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e António Dias Lourenço e onde participaram, entre outros, Alexandre Cabral, Álvaro Cunhal, Carlos de Oliveira, Carlos Pato, Fernando Lopes-Graça, Fernando Piteira Santos, Manuel da Fonseca e Mário Dionísio.

Com uma lírica “para adultos” muito sensível às injustiças sociais e à pobreza, à repressão fascista, às questões da guerra e dos direitos humanos, aos anseios de liberdade e de democracia, mas também à dimensão amorosa e à condição da mulher, Sidónio Muralha tornou-se, a partir de 1949, um dos mais marcantes escritores portugueses de poesia e contos para crianças, em livros como A Televisão da Bicharada(1962), Sete Cavalos na Berlinda (1977), Voa Pássaro Voa (1978), Catarina de Todos Nós (1979) e muitos outros – vários deles publicados no Brasil, onde passou a viver a partir de inícios da década de 60. Aí fundou a Giroflé, inovadora editora de livros infantis, e o Brasil é onde existe hoje uma fundação que perpetua o nome e a obra do escritor (algum jornal cultural, alguma rádio, algum canal de televisão poderia falar disto, por favor?). Em Portugal, Sidónio foi publicado sobretudo pela Horizonte, pela Plátano, pela Caminho, pela Gailivro, pela Porto Editora e legou-nos obras não apenas originais no campo da poesia (ludismo linguístico e valorização do significante, humor, elementos de crítica social…) mas também narrativas pioneiras no tratamento das questões ambientais, como Valéria e a Vida (1976), Helena e a Cotovia (1979) e Terra e Mar Vistos do Ar (1981), algumas delas distinguidas com prémios.
O seu amor à liberdade e à democracia, e o seu posicionamento antifascista determinaram a escrita de, entre outros livros, O Companheiro (1975), reeditado em 2020 pela Página a Página, com ilustrações originais de Irene Sá – um belíssimo livro para crianças (para todos, diremos mesmo) sobre «um país sem liberdade, mas onde as ideias boas e justas e os corações generosos não desaparecem e voltam sempre para devolver o futuro ao Povo», como é afirmado em epitexto editorial. É talvez o primeiro (ou um dos primeiros) livro(s) infantil(is) sobre a temática da ditadura salazarista/marcelista e da sequente Revolução libertadora do 25 de Abril, e um dos mais conseguidos e estilisticamente «livres» textos para a infância do autor. Uma voz literária que, no futuro, não poderemos obviamente ignorar. 

E o mesmo diremos de Manuel Nunes da Fonseca (Ílhavo, 31 de Julho de 1920 – Lisboa, 15 de Outubro de 2002), jornalista, poeta, novelista, crítico de televisão e professor português, que usou o pseudónimo Mário Castrim, tendo sido igualmente pioneiro na divulgação crítica de livros para a infância na imprensa. Os poemas, crónicas, contos e artigos «para adultos» de Castrim impõem-no como um escritor de mérito, irónico mas sensível, sempre atento ao quotidiano lisboeta, a uma sociedade injusta e à luta por uma vida e um mundo melhores. Importa, por isso, regressar sempre aos seus textos. Mas os cem anos de Castrim enquanto escritor de livros para a infância e a juventude interessam-nos sobremaneira, dado ter sido uma voz à frente do seu tempo na novelística juvenil (A Caminho de Fátima, 1992; O Caso da Rua Jau, 1994, e outros títulos), com obras que se distinguem pelo humor, pelo sentido crítico e pela preocupação com a memória e com o diálogo entre gerações. Foi também uma voz inovadora nas pequenas narrativas ilustradas para pré-leitores e leitores iniciais (veja-se a série da girafa Gira-Gira, nove volumezinhos editados a partir de 2001 pela Campo das Letras). E foi-o ainda, e sobretudo, na escrita poética, tendo sido talvez o primeiro poeta concretista na área da poesia para crianças e jovens, em belos livros como Histórias com Juízo (1969, com reedições aumentadas nos anos seguintes) e principalmente Estas São As Letras (1977). O nonsenseefectivo ou apenas aparente, o humor inteligente, o gosto pelo conto breve e pelo micro-conto, o estímulo do pensamento crítico são apenas alguns dos traços que singularizam a poética de Castrim (autor que era também comunista, como Rodari, além de católico). Trata-se, pois, duma escrita que importa continuar a ler e a dar a ler aos mais novos. E, para isso, aí estão reedições recentes como a do cativante livro de versos para os mais novos, Nome de Flor (1979) – do qual emergem as preocupações sociopolíticas de Castrim, mas também uma delicada reflexão sobre as relações afectivas e familiares. É um título trazido de novo a lume pela Página a Página, em 2020, com sugestivas ilustrações originais de Patrícia Shim. Registe-se de passagem que a Plátano, a Caminho, a Campo das Letras, a Âncora, a Página a Página são algumas das editoras que deram a conhecer os livros deste importante autor.

Gianni Rodari, Clarice Lispector, Sidónio Muralha e Mário Castrim fizeram cem anos em 2020. Mas continuam, diremos nós, mais jovens do que nunca. Tenham pois o prazer de os ler e de os oferecer aos mais novos.

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto