quarta-feira, 24 de junho de 2020

Que Luz Estarias a Ler?, de Ana Biscaia e João Pedro Mésseder

Que Luz Estarias a Ler? é um pequeníssimo livro, que tem a perfeição plena dos objectos feitos com a dedicação de um trabalho artesanal. O texto tem a profunda sensibilidade e o rigor poético de João Pedro Mésseder e as ilustrações o tão reconhecível gesto de Ana Biscaia, em que se salienta a expressividade de um desenho, que simula, no seu traçado, o carácter provisório de um esboço, por assim o exigir, também, o tão delicado tema que o livro aborda.

Ana Biscaia foi a ilustradora convidada, em Setembro de 2014, para participar no festival de Banda Desenhada e Ilustração de Treviso. As imagens que surgem no livro são consequência, como se explica no final da obra, da premência de uma resposta visual a um sentimento fortíssimo, de espanto e indignação, face aos ataques israelitas em Julho e Agosto de 2014, na Faixa de Gaza. Escreve-se no final do volume: «Ainda em Julho, as fotografias eram tremendas. O sangue sobre os destroços, os funerais, o desamparado espanto dos pequenos sobreviventes – esse espanto de que só os olhos das crianças são capazes, algumas surpreendidas a salvar livros dos escombros nas escolas destruídas pelas bombas». Mais do que as imagens da indignação, estas são, afinal, as imagens que resultam de um sofrimento genuíno, mas que deixa escapar uma réstia de esperança, que também passa pela liberdade dos livros, pelo direito ao conhecimento, que significa crescer. Trata-se de uma muito profunda interpretação de sentimentos, a partir de imagens fortíssimas: os olhares das crianças a resgatarem livros dos escombros. Tudo, nesta obra, é símbolo de homenagem e dedicação, como se se tratasse de uma oferenda, em forma de livro, em genuíno gesto de escrita, a deixar viva a marca da memória: talvez por isto, tudo no livro, incluindo o texto, seus caracteres, seja desenhado à mão, a deixar bem expresso, em todos os sentidos, a humanidade, a proximidade de valores entre quem escreve, desenha e compõe o livro.

A partir das pungentes imagens, mas com o tal olhar que é, ao mesmo de espanto e de esperança (são enormes e fundos os olhos das crianças desenhadas), João Pedro Mésseder ordenou uma história, a partir de uma personagem: Khalil, o menino que «gostava de livros», porque ler era como se uma luz se acendesse no coração dos escombros e «deixasse de ouvir os estrondos». Um dia, a escola é bombardeada, e Khalil fica sob os destroços com o livro que estaria a ler. Aysha, sua colega, procura entre os estilhaços e resgata, dentre escombros e ruínas, os livros que há-de levar para a nova escola, tendo sempre a esperança de encontrar  aquele  livro que Khalil estaria a ler, ao ser surpreendido pelas bombas. A menina sabe que um dia o irá descobrir, porque aquele «será, certamente, o que irradiar mais luz das suas páginas brancas.». Com certeza, que o livro de Khalil seria, então, o que mais contraste faria com os tons negros, escuros, definitivamente tristes, deste livro tão bonito que Ana Biscaia e João Pedro Mésseder construíram, a duas mãos, com tanto esmero e cuidado.

Este livro pode ser adquirido em: http://www.anabiscaia.com/Que-luz-estarias-a-ler


Rita Taborda Duarte, 24-2-2015