No Jornal de Notícias on-line de 6 de Setembro de 2023, é possível ler: «Bienal de Ilustração de Guimarães atribui Prémio Carreira a Manuela Bacelar. || A Bienal de Ilustração de Guimarães (BIG) deste ano vai atribuir o Prémio Carreira a Manuela Bacelar, que vai ter uma exposição dos seus trabalhos mais representativos no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG).»
É esta excelente notícia o pretexto para evocar aqui aspectos da obra da principal ilustradora portuguesa que o pós-25 de Abril de 1974 nos deu a conhecer, autora de uma obra ímpar, marcada por um traço inconfundível.Os melhores
livros ilustrados por Manuela Bacelar (n. Coimbra, 1943) têm envelhecido bem. O
mesmo é dizer: mantêm a juventude que os distinguia quando foram editados pela
primeira vez. São os casos, entre outros, de História da Égua Branca (Porto: ASA, 1977) de Eugénio de Andrade, O Menino Chamado Menino (Porto: ASA,
1983) e O Reino Perdido (Porto: ASA,
1986) de Álvaro Magalhães, ou Um Artista
Chamado Duque (Porto: ASA, 1990) de Ilse Losa, a par dos títulos premiados
a que adiante farei referência.
Tendo publicado
desenhos seus em livro ainda antes de Abril de 1974, e assinado as ilustrações
de dezenas e dezenas de volumes, escritos pelos principais autores portugueses
de literatura para crianças (Ilse Losa, Matilde Rosa Araújo, Luísa Dacosta,
Luísa Ducla Soares, António Torrado, Alice Vieira, Manuel António Pina, Álvaro
Magalhães, José Jorge Letria e muitos outros), além de ter ilustrado livros
«para adultos», como Cimo de Vila, de Carlos Tê (2010), ou o livro de
poesia A Transparência do Seu Nome (1994), de minha autoria, Manuela
Bacelar, viu crescer o seu prestígio, reconhecido em Portugal e no estrangeiro.
Foi duplamente galardoada, por exemplo, com o Prémio Calouste Gulbenkian e a
Maçã de Ouro da Bienal de Ilustração de Bratislava / 1989 pelo segundo conjunto
de imagens para Silka (1.ª ed.: 1984;
1.ª ed. com novas ilustrações, Porto: Afrontamento, 1989), da escritora alemã,
de origem judaica, Ilse Losa, uma das suas principais parceiras e amigas.
Tratava-se, no caso em apreço, de uma narrativa inspirada numa história
tradicional da região báltica, que podia ser lida como parábola sobre a intolerância
e também como meditação, cifrada, em torno do destino do povo judeu. Desta obra
de desfecho trágico soube Manuela Bacelar traduzir, em singulares ilustrações a
óleo, a ambiência angustiante e carregada. Mas, entre outros reconhecimentos
públicos obtidos pela autora de Este É o
Tobias, registem-se ainda as distinções no âmbito dos Prémios Octogones e
Pier Paolo Vergerio, a candidatura portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen
/ 1994 e o Prémio Nacional de Ilustração do Ministério da Cultura e da Secção
Portuguesa do IBBY, em 1996 – este atribuído ao livro A Sereiazinha (Porto: Afrontamento, 1996) de Andersen –, a que
vieram somar-se o Prémio António Botto, em 2000, e a selecção para importantes
exposições nacionais e internacionais (como as de Bratislava e Sarmede).
De assinalar,
por outro lado, que Manuela Bacelar – toda a vida uma artista visual de paixões
literárias, ao contrário doutros ilustradores – sempre gostou de iluminar clássicos.
E, por isso, lhe devemos livros ilustrados de contos de Charles Perrault, de
Hans Christian Andersen, de Carlo Collodi (As Aventuras de Pinóquio,
Lisboa: Caminho, 1999), sem falar das belíssimas ilustrações que realizou para
os diários de Kafka e que apenas foram publicadas, algumas delas, em formato de
postal.
Outro domínio
em que a arte de Manuela Bacelar ganhou especial notoriedade foi o dos álbuns
destinados a crianças em idade pré-escolar e escolar (1.º ciclo), tendo, neste
caso, optado por ilustrações muito diversas das que executara para Silka ou das que é possível admirar em A Sereiazinha e António e o Principezinho (Porto: Ambar, 1993) de José Jorge
Letria, dois dos seus trabalhos mais conseguidos. Nos álbuns para os mais
pequenos, os contornos ganham visibilidade, o traço é por vezes caricatural e
as imagens distanciam-se da pintura, evidenciando também o humor e a graça que distinguem
outros trabalhos de uma ilustradora cujo trabalho se caracterizou sempre,
também, por gestos artísticos de grande liberdade, com gosto pelo insólito e
pela alusão, mais ou menos evidente, a aspectos de cunho autobiográfico e até
metatextual (veja-se, a este propósito, Gatos, Lagartos e Outros Poemas
(Porto: Trampolim, 2011), de João Pedro Mésseder).
A publicação
de tais álbuns surgia num período em que ainda eram raras, em Portugal, as
apostas na edição do livro ilustrado para os mais pequenos, contendo uma única
narrativa – situação que, pelos finais da década de 90, começaria a conhecer
sinais de evolução positiva. Na senda dos trabalhos de Leonor Praça, da dupla
Maria Isabel César Anjo / Maria Keil (O
Inverno É o Tempo já Velho; A
Primavera É o Tempo a Crescer, 1971, etc.), ou do par Luísa Dacosta e Armando
Alves em O Elefante Cor de Rosa
(1974), e à semelhança ainda do que fizera Maria Keil – em O Pau de Fileira (1976) e Os
Presentes (1979) –, Bacelar passa a assinar ilustração e texto, fundando a
colecção «Triciclo Voador» e publicando, em 1990, dois títulos – O Meu Avô e O Dinossauro –, aos quais se seguiu um terceiro, quatro anos
depois, com texto de Luísa Ducla Soares: Os
Ovos Misteriosos. Editados pela Afrontamento, traduzidos para francês, e
dois deles premiados, estes livros divertidos e de assinalável qualidade
estética e educativa merecem figurar em qualquer bibliografia selectiva portuguesa
de obras para uma faixa etária situada entre os 3 e os 7 anos. Acrescente-se
que alguns destes livros atingiram um número de edições considerável. Como
assinala um texto da BIG, assinado por Jorge Silva, em 2017, Os Ovos Misteriosos
conhece a 22.ª edição, e AEIOU, História das Cinco Vogais (Afrontamento),
igualmente escrito por Luísa Ducla Soares, alcança a sua 13.ª edição.
Na sua
colecção «Tobias» (nove volumes da Porto Editora), Manuela Bacelar ofereceu-nos
outros álbuns destinados a crianças pequenas (como Este É o Tobias, 1989, Tobias,
os 7 Anões e Etc., 1990, e Tobias às
Fatias, 1991), a juntar a obras mais vocacionadas para a faixa dos 6-8 anos
(como Tobias Encontra Leonardo, 1991,
ou Tobias – O que Eu Passei para Chegar Aqui!, 1992), num louvável e
pioneiríssimo esforço de renovação do panorama português dos livros ilustrados
com pouco texto, em formato de álbum narrativo. Este trabalho prolonga-se na
publicação de Era Uma Vez a Bublina e
do livro de actividades Bublina e as
Cores (Porto: 1996), ambos da Desabrochar e dirigidos a crianças em idade
pré-escolar. Em todas estas obras, de cunho mais lúdico, a artista continua a
revelar o seu estilo inconfundível, mas também uma conseguida pluralidade de
registos gráficos e expressivos, que se alarga ao livro A Nau Mentireta (Porto: 1991), editado pela Civilização e com texto,
mais uma vez, de Luísa Ducla Soares.
Aos mais desmemoriados
vale a pena recordar o final dos anos oitenta e os inícios da década de noventa
do século passado. Com a edição das colecções «Tobias» e «Triciclo voador»,
diversas vozes se precipitaram a diminuir, de modo injusto, a escrita de alguém
que, até essa altura, apenas se afirmara como ilustradora. Na verdade,
escapava-lhes o essencial do projecto de Manuela Bacelar, apostada em
impulsionar a criação de álbuns para pré-leitores e primeiros leitores, em que
se entrosavam uma ilustração e um texto da responsabilidade de uma e a mesma
pessoa. Importa não esquecer que a artista se formara na antiga Checoslováquia
e, nas décadas de sessenta e setenta (período em que a evolução do álbum
conheceu momentos decisivos em alguns países europeus e nos Estados Unidos),
convivera com a produção europeia neste campo – o que não era seguramente o
caso de alguns dos seus detractores.
No panorama
editorial português de finais dos anos oitenta, continuavam a destacar-se, em
termos quantitativos, o romance juvenil (principalmente de série), a obra de
informação e divulgação, e sobretudo o livro de contos para crianças em idade
escolar, escasseando o álbum para crianças dos quatro aos oito anos – essa
tipologia de obra para a infância a que os anglos-saxónicos chamam picture storybook e os francófonos album.
Caracterizemo-lo então em poucas palavras: estamos a falar de um livro de capa
dura, quase sempre impresso em quadricromia, contendo uma história breve,
contada numa estreita correlação entre palavras e imagens (em alguns casos, prescinde-se
do texto – mas nunca do peritexto – linguístico). As dificuldades na publicação
de álbuns prendiam-se, então, com os elevados custos de produção, os quais
tinham repercussões no preço de venda ao público. Uma vez no mercado, o álbum
defrontava-se com diversos problemas, o menor dos quais não era a escassa
utilização do livro na educação pré-escolar e no 1.º ciclo do Ensino Básico.
Outro obstáculo à proliferação deste tipo de obras residia na quase inexistência,
em Portugal, de autores com a dupla vocação da escrita e da ilustração
(situação que, com algumas excepções, perdura). Acrescia que raramente haviam
surgido equipas, compostas por um argumentista / escritor e por um ilustrador /
designer gráfico, capazes de conceber
um produto de nível globalmente satisfatório, em termos de articulação texto /
imagem.
Familiarizada
com o panorama da edição internacional, capaz de reunir os dois requisitos em
causa, é natural que tenha sido a mais experiente das ilustradoras portuguesas
uma das primeiras a abalançar-se ao projecto de conceber este tipo de obras.
Centremo-nos,
pois, em O Meu Avô e O Dinossauro. Ambos apresentam
narrativas simples, no plano diegético, com ilustrações que logram fazer
«sonhar o texto» (para usar uma expressão de Georges Jean). Mimetizando uma
enunciação de criança (ao estilo «composição escrita» infantil), O Meu Avô descreve o quotidiano de uma
relação feliz e divertida entre avô e neto. Abrangendo por vezes duas páginas,
as imagens exprimem tal relação por meio de uma esfusiante e apelativa
combinação de vermelhos, roxos e verdes, da qual se desprende uma grande
sensação de liberdade em termos plásticos. Além disso, a leitura permite à
criança reter uma representação não estereotipada da pessoa idosa, apresentada
como activa e cúmplice, marcada por visíveis traços de positividade. O
companheirismo e o relacionamento afectuoso dos mais pequenos com alguém muito
mais velho constituem, pois, imagens de marca deste álbum, cuja actualidade e
frescura se mantêm intactas.
Servido por
uma história igualmente simples, surrealizante, e adoptando também uma
focalização de aparência infantil, O
Dinossauro conta como um monte verde, onde se ergue uma aldeia com casas e
árvores, era afinal o gigantesco dorso de um dinossauro. Certo dia, o animal
acorda de um sono milenar e, metendo pés ao caminho, dá um longo passeio até
regressar ao lugar de origem e, de novo, adormecer. O passeio transforma-se
numa viagem pelo mundo, que revela, de modo sucinto mas poético, a sua infinita
variedade: a diversidade dos lugares e das gentes que os povoam, as diferenças
no clima e nas habitações e a passagem do tempo. Existe, por conseguinte, uma
vertente formativa que parece valorizar a diversidade cultural e paisagística.
Mas a ela sobrepõem-se a poesia das imagens e o humor (veja-se por exemplo a
referência, em post scriptum, ao
facto de as muitas fotografias tiradas pelo professor nunca terem chegado a
existir, em virtude de a personagem se ter esquecido de inserir o rolo na câmara).
A evolução temporal e dos ambientes é sugerida pelo jogo gradativo das cores e
pelas nuances de tonalidade, o que
faz do livro uma pequena festa para o olhar. Ou não fosse este o elemento
aglutinador de uma obra em que o discurso linguístico e a sequência das
ilustrações mutuamente se complementam: o olhar do narrador e dos deslumbrados
aldeões em viagem, o do professor-fotógrafo e, por que não dizê-lo, o do
próprio leitor.
Com estes
álbuns, Manuela Bacelar dava pois, no início da década de noventa, um impulso
decisivo ao álbum português destinado a crianças pequenas e revelava, uma vez
mais, a versatilidade do seu talento. Outros álbuns seus, na mesma linha (alguns sem palavras), se
seguiram, tais como Sebastião (2004), Bernardino (2005), 24 Horas Antes do Natal (2016), todos editados pela Afrontamento, tal como O
Livro do Pedro (2005), primeira obra portuguesa para crianças a abordar,
assumidamente, um modelo familiar centrado na relação de uma criança com um
casal homossexual.
Sinto-me, em suma, particularmente feliz, por ter sido premiada pela BIG uma velha amiga, e a artista que ilustrou belissimamente livros meus. E não consigo deixar de recordar que sobre a obra marcante de Manuela Bacelar diversos escritos produzi, além de ter arguido, na Universidade de Aveiro, uma tese de doutoramento de Carina Rodrigues, orientada por Ana Margarida Ramos, sobre os seus álbuns destinados aos mais pequenos.
José António Gomes
IEL-C da Escola Superior de
Educação do Porto