sexta-feira, 3 de maio de 2024

Um livro para todos, ao lado do “Sempre!” – quer dizer, ao lado de Abril

O ano de 2024 viu aumentar muito o número de obras para a infância e a juventude que abordam a temática do fascismo e da sua derrota pelo 25 de Abril de 1974. Ao descrevê-las, convenhamos que não aplicaremos a todas, sem hesitações, o termo de literatura. Mas, com sugestivas ilustrações e uma impactante capa de Madalena Matoso, apostando tendencialmente nas cores primárias, como é característico do estilo desta artista, o livro de Rita Taborda Duarte, Sempre! (col. “Missão democracia”, edição da Assembleia da República, 2024), não nos deixa dúvidas. Nem nos deixa indiferentes. A inventividade linguística, sobretudo nos planos do léxico, das imagens e do registo oralizante mantido na narração (numa constante interpelação do narratário); um assumido uso de termos que não abdica de suscitar um enriquecimento vocabular do potencial leitor; o humor que não prescinde do elemento dramático nem da crítica inteligente e desassombrada, a par da intertextualidade, são apenas alguns traços que nos levam a embarcar num protocolo de leitura literária. De que intertextualidade se fala aqui? Sobretudo de um diálogo envolvente com textos de natureza músico-literária: Tordo/Ary, José Afonso, Sérgio Godinho, Adriano/Portugal/Alegre, Lopes-Graça/José Gomes Ferreira, Chico Buarque e vários outros (este é, de facto, um livro com música dentro, sem precisar de incluir qualquer CD áudio ou código QR). Depois, importa ainda falar da convocação de fragmentos de Sophia, de Ary, de Sena, de Ruy Belo, de Ramos Rosa, de Cesariny, de O’Neill pelo meio da narração. É como se na linguagem de Rita Taborda Duarte sempre tivessem estado naturalmente incrustadas estas pequeninas jóias expressivas. Trata-se, aliás, de um eixo da escrita da autora e que percorre tanto a sua poesia como os textos para crianças e jovens.

Um livro, pois, de recepção transgeracional, dado que quase todas estas citações são emocional e esteticamente interpelantes para leitores adultos com certo background político-cultural. Ajudam assim a criar uma atmosfera de nervura revolucionária e abrilista (“abrilar” é, aliás, um termo – vi-o utilizado, no ano transacto, por uma professora, numa unidade didáctica – que Rita faz questão em ter como “pequenina luz bruxuleante” ao longo desta sua narrativa de claro contorno poético, em que até o glossário final é poetizante e divertido). 

A prosa já vai longa e dou conta de que nada disse sobre a dimensão ideotemática e humana deste livro belíssimo e comovente. É que a autora adopta aquilo a que se pode chamar um registo autobiográfico (tendência que começa a reforçar-se na nossa escrita para crianças e jovens). E faz muito bem. A história que é contada na primeira pessoa com os recursos próprios da linguagem ficcional e da poesia é uma história de vida, em muito coincidente com a da escritora, da sua irmã e dos seus pais. Com um pai antifascista e exilado na Suécia (como aconteceu com Mário de Carvalho, pai de Rita), uma família a ser obrigada a deslocar-se para esse país para aí se instalar, uma dedicatória ao pai e à mãe… – são diversos, enfim, os elementos que, cruzados, nos induzem à activação de um “pacto” de leitura “autobiográfico” (no todo ou em parte – e garanto que não vou estar neste espaço a maçar ninguém com argumentos teóricos de matriz lejeuniana ou outra).

Enquadrado numa colecção que, no futuro, há-de ter muito que se lhe diga – dos pontos de vista ideológico, político, institucional, da proveniência autoral e de outros –, Sempre!, pelo que fica dito, é um livro de qualidade rara e que respira autenticidade, que respira um vivido, que seduz por essa via, mas que igualmente ilumina pela certeira caracterização do fascismo (grande Rita, a chamar os bois pelos nomes, e sem medo!) e, principalmente, pelo modo como exprime (sem deixar de divertir) a dimensão dramática e emocional de tudo o que é contado – e não é pouco – sobre o que foi a oposição democrática ao fascismo e sobre as implicações que teve na vida familiar e no crescimento de uma criança.

Uma nota final: e não é que a lindíssima capa de Madalena Matoso, criada muito antes de Abril de 2024, parece antecipar o que foi a explosão de gente, de alegria e de luta, nas ruas de Lisboa e do Porto, no passado dia 25? Sem o querer… acertou na mouche.

Um livro que recomendo e que, estou certo, ninguém esquecerá.

 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais) da Escola Superior de Educação do Porto

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Manuela Bacelar: da ilustração ao álbum




No Jornal de Notícias on-line de 6 de Setembro de 2023, é possível ler: «Bienal de Ilustração de Guimarães atribui Prémio Carreira a Manuela Bacelar. || A Bienal de Ilustração de Guimarães (BIG) deste ano vai atribuir o Prémio Carreira a Manuela Bacelar, que vai ter uma exposição dos seus trabalhos mais representativos no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG).»

É esta excelente notícia o pretexto para evocar aqui aspectos da obra da principal ilustradora portuguesa que o pós-25 de Abril de 1974 nos deu a conhecer, autora de uma obra ímpar, marcada por um traço inconfundível.Os melhores livros ilustrados por Manuela Bacelar (n. Coimbra, 1943) têm envelhecido bem. O mesmo é dizer: mantêm a juventude que os distinguia quando foram editados pela primeira vez. São os casos, entre outros, de História da Égua Branca (Porto: ASA, 1977) de Eugénio de Andrade, O Menino Chamado Menino (Porto: ASA, 1983) e O Reino Perdido (Porto: ASA, 1986) de Álvaro Magalhães, ou Um Artista Chamado Duque (Porto: ASA, 1990) de Ilse Losa, a par dos títulos premiados a que adiante farei referência.

Tendo publicado desenhos seus em livro ainda antes de Abril de 1974, e assinado as ilustrações de dezenas e dezenas de volumes, escritos pelos principais autores portugueses de literatura para crianças (Ilse Losa, Matilde Rosa Araújo, Luísa Dacosta, Luísa Ducla Soares, António Torrado, Alice Vieira, Manuel António Pina, Álvaro Magalhães, José Jorge Letria e muitos outros), além de ter ilustrado livros «para adultos», como Cimo de Vila, de Carlos Tê (2010), ou o livro de poesia A Transparência do Seu Nome (1994), de minha autoria, Manuela Bacelar, viu crescer o seu prestígio, reconhecido em Portugal e no estrangeiro. Foi duplamente galardoada, por exemplo, com o Prémio Calouste Gulbenkian e a Maçã de Ouro da Bienal de Ilustração de Bratislava / 1989 pelo segundo conjunto de imagens para Silka (1.ª ed.: 1984; 1.ª ed. com novas ilustrações, Porto: Afrontamento, 1989), da escritora alemã, de origem judaica, Ilse Losa, uma das suas principais parceiras e amigas. Tratava-se, no caso em apreço, de uma narrativa inspirada numa história tradicional da região báltica, que podia ser lida como parábola sobre a intolerância e também como meditação, cifrada, em torno do destino do povo judeu. Desta obra de desfecho trágico soube Manuela Bacelar traduzir, em singulares ilustrações a óleo, a ambiência angustiante e carregada. Mas, entre outros reconhecimentos públicos obtidos pela autora de Este É o Tobias, registem-se ainda as distinções no âmbito dos Prémios Octogones e Pier Paolo Vergerio, a candidatura portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen / 1994 e o Prémio Nacional de Ilustração do Ministério da Cultura e da Secção Portuguesa do IBBY, em 1996 – este atribuído ao livro A Sereiazinha (Porto: Afrontamento, 1996) de Andersen –, a que vieram somar-se o Prémio António Botto, em 2000, e a selecção para importantes exposições nacionais e internacionais (como as de Bratislava e Sarmede).

De assinalar, por outro lado, que Manuela Bacelar – toda a vida uma artista visual de paixões literárias, ao contrário doutros ilustradores – sempre gostou de iluminar clássicos. E, por isso, lhe devemos livros ilustrados de contos de Charles Perrault, de Hans Christian Andersen, de Carlo Collodi (As Aventuras de Pinóquio, Lisboa: Caminho, 1999), sem falar das belíssimas ilustrações que realizou para os diários de Kafka e que apenas foram publicadas, algumas delas, em formato de postal.

Outro domínio em que a arte de Manuela Bacelar ganhou especial notoriedade foi o dos álbuns destinados a crianças em idade pré-escolar e escolar (1.º ciclo), tendo, neste caso, optado por ilustrações muito diversas das que executara para Silka ou das que é possível admirar em A Sereiazinha e António e o Principezinho (Porto: Ambar, 1993) de José Jorge Letria, dois dos seus trabalhos mais conseguidos. Nos álbuns para os mais pequenos, os contornos ganham visibilidade, o traço é por vezes caricatural e as imagens distanciam-se da pintura, evidenciando também o humor e a graça que distinguem outros trabalhos de uma ilustradora cujo trabalho se caracterizou sempre, também, por gestos artísticos de grande liberdade, com gosto pelo insólito e pela alusão, mais ou menos evidente, a aspectos de cunho autobiográfico e até metatextual (veja-se, a este propósito, Gatos, Lagartos e Outros Poemas (Porto: Trampolim, 2011), de João Pedro Mésseder).

A publicação de tais álbuns surgia num período em que ainda eram raras, em Portugal, as apostas na edição do livro ilustrado para os mais pequenos, contendo uma única narrativa – situação que, pelos finais da década de 90, começaria a conhecer sinais de evolução positiva. Na senda dos trabalhos de Leonor Praça, da dupla Maria Isabel César Anjo / Maria Keil (O Inverno É o Tempo já Velho; A Primavera É o Tempo a Crescer, 1971, etc.), ou do par Luísa Dacosta e Armando Alves em O Elefante Cor de Rosa (1974), e à semelhança ainda do que fizera Maria Keil – em O Pau de Fileira (1976) e Os Presentes (1979) –, Bacelar passa a assinar ilustração e texto, fundando a colecção «Triciclo Voador» e publicando, em 1990, dois títulos – O Meu Avô e O Dinossauro –, aos quais se seguiu um terceiro, quatro anos depois, com texto de Luísa Ducla Soares: Os Ovos Misteriosos. Editados pela Afrontamento, traduzidos para francês, e dois deles premiados, estes livros divertidos e de assinalável qualidade estética e educativa merecem figurar em qualquer bibliografia selectiva portuguesa de obras para uma faixa etária situada entre os 3 e os 7 anos. Acrescente-se que alguns destes livros atingiram um número de edições considerável. Como assinala um texto da BIG, assinado por Jorge Silva, em 2017, Os Ovos Misteriosos conhece a 22.ª edição, e AEIOU, História das Cinco Vogais (Afrontamento), igualmente escrito por Luísa Ducla Soares, alcança a sua 13.ª edição.

Na sua colecção «Tobias» (nove volumes da Porto Editora), Manuela Bacelar ofereceu-nos outros álbuns destinados a crianças pequenas (como Este É o Tobias, 1989, Tobias, os 7 Anões e Etc., 1990, e Tobias às Fatias, 1991), a juntar a obras mais vocacionadas para a faixa dos 6-8 anos (como Tobias Encontra Leonardo, 1991, ou Tobias O que Eu Passei para Chegar Aqui!, 1992), num louvável e pioneiríssimo esforço de renovação do panorama português dos livros ilustrados com pouco texto, em formato de álbum narrativo. Este trabalho prolonga-se na publicação de Era Uma Vez a Bublina e do livro de actividades Bublina e as Cores (Porto: 1996), ambos da Desabrochar e dirigidos a crianças em idade pré-escolar. Em todas estas obras, de cunho mais lúdico, a artista continua a revelar o seu estilo inconfundível, mas também uma conseguida pluralidade de registos gráficos e expressivos, que se alarga ao livro A Nau Mentireta (Porto: 1991), editado pela Civilização e com texto, mais uma vez, de Luísa Ducla Soares.

Aos mais desmemoriados vale a pena recordar o final dos anos oitenta e os inícios da década de noventa do século passado. Com a edição das colecções «Tobias» e «Triciclo voador», diversas vozes se precipitaram a diminuir, de modo injusto, a escrita de alguém que, até essa altura, apenas se afirmara como ilustradora. Na verdade, escapava-lhes o essencial do projecto de Manuela Bacelar, apostada em impulsionar a criação de álbuns para pré-leitores e primeiros leitores, em que se entrosavam uma ilustração e um texto da responsabilidade de uma e a mesma pessoa. Importa não esquecer que a artista se formara na antiga Checoslováquia e, nas décadas de sessenta e setenta (período em que a evolução do álbum conheceu momentos decisivos em alguns países europeus e nos Estados Unidos), convivera com a produção europeia neste campo – o que não era seguramente o caso de alguns dos seus detractores.

No panorama editorial português de finais dos anos oitenta, continuavam a destacar-se, em termos quantitativos, o romance juvenil (principalmente de série), a obra de informação e divul­gação, e sobretudo o livro de contos para crianças em idade escolar, escasseando o álbum para crianças dos quatro aos oito anos – essa tipologia de obra para a infância a que os anglos-saxónicos chamam picture storybook e os francófonos album. Caracterizemo-lo então em poucas palavras: estamos a falar de um livro de capa dura, quase sempre impresso em quadricromia, contendo uma história breve, contada numa estreita correlação entre palavras e imagens (em alguns casos, prescinde-se do texto – mas nunca do peritexto – linguístico). As dificuldades na publicação de álbuns prendiam-se, então, com os elevados custos de produção, os quais tinham repercussões no preço de venda ao público. Uma vez no mercado, o álbum defrontava-se com diversos problemas, o menor dos quais não era a escassa utilização do livro na educação pré-escolar e no 1.º ciclo do Ensino Básico. Outro obstáculo à prolife­ração deste tipo de obras residia na quase inexistên­cia, em Portugal, de autores com a dupla vocação da escrita e da ilustração (situação que, com algumas excepções, perdura). Acrescia que raramente haviam surgido equipas, compostas por um argumentista / escritor e por um ilustrador / designer gráfico, capazes de conceber um produto de nível globalmente sa­tisfatório, em termos de articulação texto / imagem.

Familiarizada com o panorama da edição internacional, capaz de reunir os dois requisitos em causa, é natural que tenha sido a mais experiente das ilustradoras portuguesas uma das primeiras a abalançar-se ao projecto de conceber este tipo de obras.

Centremo-nos, pois, em O Meu Avô e O Dinossauro. Ambos apresentam narrativas simples, no plano diegético, com ilustrações que logram fazer «sonhar o texto» (para usar uma expressão de Georges Jean). Mimetizando uma enunciação de criança (ao estilo «composição escrita» infantil), O Meu Avô descreve o quotidiano de uma relação feliz e divertida entre avô e neto. Abrangendo por vezes duas páginas, as imagens exprimem tal relação por meio de uma esfusiante e apelativa combinação de vermelhos, roxos e verdes, da qual se desprende uma grande sensação de liberdade em termos plásticos. Além disso, a leitura permite à criança reter uma representação não estereotipada da pessoa idosa, apresentada como activa e cúmplice, marcada por visíveis traços de positividade. O companheirismo e o relacionamento afectuoso dos mais pequenos com alguém muito mais velho constituem, pois, imagens de marca deste álbum, cuja actualidade e frescura se mantêm intactas.

Servido por uma história igualmente simples, surrealizante, e adoptando também uma focalização de aparência infantil, O Dinossauro conta como um monte verde, onde se ergue uma aldeia com casas e árvores, era afinal o gigantesco dorso de um dinossauro. Certo dia, o animal acorda de um sono milenar e, metendo pés ao caminho, dá um longo passeio até regressar ao lugar de origem e, de novo, adormecer. O passeio transforma-se numa viagem pelo mundo, que revela, de modo sucinto mas poético, a sua infinita variedade: a diversidade dos lugares e das gentes que os povoam, as diferenças no clima e nas habitações e a passagem do tempo. Existe, por conseguinte, uma vertente formativa que parece valorizar a diversidade cultural e paisagística. Mas a ela sobrepõem-se a poesia das ima­gens e o humor (veja-se por exemplo a referência, em post scriptum, ao facto de as muitas fotografias tiradas pelo professor nunca terem chegado a existir, em virtude de a personagem se ter esquecido de inserir o rolo na câmara). A evolução temporal e dos ambientes é su­gerida pelo jogo gradativo das cores e pelas nuances de tonalidade, o que faz do livro uma pequena festa para o olhar. Ou não fosse este o elemento aglutinador de uma obra em que o discurso linguístico e a sequência das ilustrações mutuamente se complementam: o olhar do narra­dor e dos deslumbrados aldeões em viagem, o do professor­-fotógrafo e, por que não dizê-lo, o do próprio leitor.

Com estes álbuns, Manuela Bacelar dava pois, no início da década de noventa, um impulso decisivo ao álbum português destinado a crianças pequenas e revelava, uma vez mais, a versatilidade do seu talento. Outros álbuns seus, na mesma linha (alguns sem palavras), se seguiram, tais como Sebastião (2004), Bernardino (2005), 24 Horas Antes do Natal (2016), todos editados pela Afrontamento, tal como O Livro do Pedro (2005), primeira obra portuguesa para crianças a abordar, assumidamente, um modelo familiar centrado na relação de uma criança com um casal homossexual.

Sinto-me, em suma, particularmente feliz, por ter sido premiada pela BIG uma velha amiga, e a artista que ilustrou belissimamente livros meus. E não consigo deixar de recordar que sobre a obra marcante de Manuela Bacelar diversos escritos produzi, além de ter arguido, na Universidade de Aveiro, uma tese de doutoramento de Carina Rodrigues, orientada por Ana Margarida Ramos, sobre os seus álbuns destinados aos mais pequenos.


José António Gomes

IEL-C da Escola Superior de Educação do Porto


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Balada para Sophie – uma narrativa gráfica de primeira classe



Um fantástico e premiadíssimo romance gráfico. Gostava de o conhecer?

Estou a falar de Balada para Sophie (Companhia das Letras, 2021), uma narrativa gráfica de excepcional qualidade, assinada por uma dupla de sucesso: o português Filipe Melo (argumento e texto) e o argentino Juan Cavia (desenho), que, já antes, haviam editado o romance gráfico Os Vampiros (Tinta da China, 2016). Mais recentemente, publicaram também Comer Beber (Tinta da China, 2021) e a sua obra tem tido sequência. São autores que já viram Balada para Sophie traduzido para outras línguas e com um percurso premiado no cinema. 

A obra centra-se, de forma comovente, na música e no seu poder. Mas também num dramático percurso de vida – uma carreira musical, e não só, de um homem famoso – que, de alguma forma, termina dum modo feliz e redentor. Balada para Sophie dá-nos a conhecer um sofisticado argumento que, de maneira particularmente conseguida, se articula com um desenho de superior qualidade, muito cinematográfico e capaz de nos dar a ver, como poucos, tanto a intensidade do drama como os lances mais comoventes, balançando entre a realidade e o sonho. 

Um livro que é já um clássico contemporâneo da nossa banda desenhada/romance gráfico. A ser lido por um público alargado: jovens e adutlos.

 

José António Gomes

Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do INED da ESE do Porto

 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

O Segredo da Felicidade, de Luísa Ducla Soares, ilustrado por Cátia Vidinhas


 

Encontramo-nos em Maio de 2023 e O Segredo da Felicidade (Livros Horizonte), de Luísa Ducla Soares, ilustrado por Cátia Vidinhas, está acabadinho de sair. Trata-se de nova edição, com novas imagens, dum livro inicialmente editado em 2012 pela Civilização.


Divertidíssimo e inteligente, inspirando-se no universo do conto popular de exemplo, O Segredo da Felicidade está sempre, porém, a trocar as voltas ao leitor. Quando chega ao final de uma sequência e a uma previsível moral – aqui muita vez traduzida num provérbio – o contador surpreende e declara (eis apenas um exemplo): «Haviam de achar que os pobrezinhos, mesmo sem nada, podem ser felizes. Mas eu não concordo com esse fim e os criados também não.» (p. 14). E vai de avançar para nova sequência, novo rumo da acção que concluirá de maneira semelhante.


Do que gosto neste livro? Gosto do facto de ele ser pouco convencional e de ser, como disse, divertido. Gosto do facto de partilhar provérbios e de pôr o leitor a reflectir sobre eles criticamente e de forma lúdica. Gosto do facto de estimular o inconformismo crítico. Gosto da circunstância de constituir uma pequena mas rica homenagem aos poderes da imaginação e ao património literário oral tradicional, e ainda de explorar certa dimensão metatextual, o que o torna um livrinho que respira modernidade. E gosto também do facto de se colocar ao lado dos mais fracos e apelar a uma governação pelo menos sensata. Ou não fosse a autora Luísa Ducla Soares, aqui bem acolitada por Cátia Vidinhas, com ilustrações coloridas, animadas e elas próprias bem-dispostas, em consonância com o texto que iluminam. 


Às vezes penso: daqui a uns bons anos, quando uns grandes e premiados romancistas e poetas deste nosso tempo, ditos para adultos, já estiverem todos mortos, enterrados e esquecidos, ainda os contos frescos e engraçados, imaginativos e bem contados de Luísa Ducla Soares hão-de andar por aí a alegrar e a fazer pensar, como se tivessem acabado de vir ao mundo. 


Luísa Ducla Soares só não é a rainha da nossa literatura para a infância porque calha ser republicana. Chamemos-lhe por isso: a presidente da república dos nossos contos infantis. Que maravilha haver criadores assim.

 


José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O mau vento do senhor sargento




Abre-se o livro e lê-se a noite. E ainda de noite, entre arquitecturas, pequenos peixes – parecem tubarões – atravessam galerias, janelas – estaremos onde, no fundo do mar? Mas no fundo do mar não há gatos… 

Caras, o título conta-nos sobre o que é: a cara do senhor sargento, do senhor capitão, do senhor major, do senhor general, do senhor ministro, do senhor presidente, de sua majestade. 

Este é um livro que me fala de temperatura. A culpa é da ilustradora que faz da cor uso exímio. A culpa também é do formato do livro, que ocupa toda a latitude do olhar. 

Sombras, grandes planos, cor, vento, enquadramentos, ocultações, escadarias, arcadas, galerias, chuva, tempestade. Gafanhotos, coelhos, ratos, gatos, pequenos tubarões, andam sempre por ali.

Mas há uma história aqui. Um movimento. Quando o texto reage, as imagens entram em ebulição. 

Mas é uma ebulição muito suave (é o lado sensitivo da ilustradora). 

Chuva e sol acontecem, vê-se o arco-íris mágico ao longe. 

Uma barca que navega, flutua, cheia de festa e de alegria (os mandões foram finalmente expulsos). 

Estrelas cadentes (por fim). Pede um desejo, pois então! 

O texto-gatilho é um convite à insubmissão, à insubserviência e à coragem (por oposição ao medo): e enfrento (diz) a gravidade de todas as caras. 

O texto não perdoa e não quer sequer entender estas caras (não entenderá?). O que o narrador quer é enfrentá-las. 

Porque decidiu o autor escrever sobre elas? Porque são caras de lugares de poder? Porque são caras de pessoas que ocupam lugares de poder para maltratar os outros? Porque são caras que precisam de ser postas em causa? Porque são caras que atordoam e não deixam descansar? Porque são caras humanas, tão humanas como as nossas, e que por via do humano também se tornam terríveis? Porque o humano pode ser vendaval, vulcão, tempestade, sinistro. 

Mas o que é tenebroso pode ser vencido, pela coragem. 

 

Ana Biscaia, ilustradora e editora

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

‘Ana-anA’, de Ilse Losa, com ilustrações de Manuela Bacelar: uma obra ao serviço da inteligência e da sensibilidade

    

Guardo nos meus arquivos algumas das muitas crónicas que Ilse Losa publicou em diversos jornais, como o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto, o Diário de Notícias, o Público, para apenas citar quatro. Uma delas veio a lume no Jornal de Notícias, provavelmente na década de oitenta do século XX, mas, por esquecimento, não registei na altura a data em que saiu. (A propósito: aguarda-se a recolha e publicação em livro das crónicas da autora, dispersas por numerosas publicações periódicas. São, é um facto, muito relevantes quer para a compreensão da personalidade marcante de Ilse quer para um conhecimento aprofundado da sua escrita, da sua poética e do seu tempo). O texto a que me refiro intitula-se “Janelas abertas” e nele se pode ler: 

Não faltam pessoas com vontade de limitar a literatura infantil a esquemas determinados. Assim umas entendem que as crianças devem apenas ler histórias com um conteúdo realista ou de intervenção social; outras, por sua vez, são da opinião de que só o puro imaginário se ajusta ao mundo infantil; outras acham que as crianças devem não ser inquietadas, que lhes convém acreditar num mundo intacto, cor-de-rosa e, por isso, defendem uma literatura levezinha, sem problemas, que não entristece e, na melhor das hipóteses, provoca o riso; ainda outras indicam, como única literatura infantil válida, a didáctica que, em seu entender, abre caminho para um melhor conhecimento do mundo. E ele há também quem ache que livros para crianças são uma inutilidade. || Pergunto-me por que razão não se traçam tais esquemas rígidos quanto à literatura para adultos. Por que não se nos propõe lermos exclusivamente isto ou aquilo sem perdermos tempo com o resto…

Neste seu artigo, depois de discorrer sobre a diversidade existente no mundo dos livros para crianças, de valorizar o acesso dos mais novos quer a literatura nacional quer a literatura estrangeira, e de defender que seja salutar interessarem-se também por certas obras da literatura dita para adultos, Ilse Losa, em conformidade com o título da crónica, conclui: “Deixemos, portanto, portas e janelas abertas para que essa gente nova possa livremente ir em busca dos mundos da arte e do conhecimento.”
Esta sensata e saudável apologia da diversidade de leituras a proporcionar à criança e ao jovem, a autora de O Mundo em que Vivi aplicou-a à sua própria criação literária e, por isso, nela coexistem tanto narrativas de orientação realista, como O Senhor Pechincha (1993, inicialmente intitulado “Mosquito e o sr. Pechincha” e editado em 1966), O Quadro Roubado (1977) ou O Expositor (1983, publicado, uma década mais tarde, sob o título Miguel, o Expositor), como histórias de tipo fantástico, como Viagem com Wish (1983) ou Silka (1984). 
Ana Cristina Vasconcelos de Macedo é autora do mais aprofundado estudo publicado até ao momento sobre a escrita de Ilse Losa para a infância e a juventude, incluindo obras de crossover fiction como O Mundo em que Vivi. É certo que as do primeiro tipo que mencionámos, às quais Ana Cristina Macedo chamou (2018: 117) narrativas de contornos realistas, são talvez em maior número e foram sobretudo publicadas entre 1949 e os anos oitenta, espelhando, em particular as primeiras, certa ligação da escrita de Ilse ao movimento neo-realista. Já as do segundo tipo, segundo a mesma autora (Macedo, 2018: 231), ou seja, as narrativas de contornos fantásticos ou do imaginário, foram sendo editadas, maioritariamente, a partir de 1980.
Publicado pela primeira vez em 1986, na colecção ASA Juvenil, e reeditado em 2018, Ana-anA ou Uma Coisa nunca Vista (Afrontamento, 2018) enquadra-se pois no segundo conjunto de contos e novelas. Por outro lado, inscreve-se na categoria das histórias de temática natalícia, de tão enraizada tradição na literatura da infância (E. T. A. Hoffmann, Hans Christian Andersen, Charles Dickens, O. Henry, L. Frank Baum, Sophia de Mello Breyner Andresen…) e de tendencial bom acolhimento por parte desse público. 
Em Ana-anA existe outro traço discursivo relevante: o facto de, começando com uma fórmula de abertura – destinatário (“Mico, querido irmão:”) e data –, estar redigido como uma carta que Ana dirige ao seu irmão, no dia 20 de Dezembro, na sequência de uma longa viagem, na verdade curta – pois tudo sugere que se trata de um sonho acordado. Nessa espécie de viagem mental para um mundo outro, mágico, Ana fica a conhecer, além do professor Unapedra (com o seu computador chamado doutor Mafona) – figura de sábio que gostava de terminar o seu dia tocando violino no alto de uma árvore –, Dona Calíope, misto de “musa, fada, bruxa” (p. 32) e uma série de animais, entre o personificado e o mágico, como a girafa Greta e a zebra, ambas falantes, além doutros bichos como o cão Calef (há quase sempre cães nas histórias de Ilse), a gata Zuzu de Dona Calíope, e o macaco Félix, porteiro bem-falante da grande casa, com a sua cartola mágica, herdada de Fumanchu, mestre dos prestidigitadores. 
A viagem principia na rua do Sol (não é a única alusão portuense no livro, outra há, a dada altura, ao velho cinema Chaplin, em Leça da Palmeira, conquanto acreditemos que podem não ter passado de meras referências inspiradoras). Aquela via é “uma rua estreita” com “de cada lado, casas tão altas que o sol nunca lá chega a entrar (…) por vezes acontece com as ruas o mesmo que com as pessoas: o nome não lhes assenta. É assim nesta Terra, nem tudo bate certo.” (p. 3). Esta frase, indiciadora do assombro que se seguirá, é escrita por Ana na sua carta ao irmão, para quem procurava, nas lojas, uma “linda prenda” de Natal, “alguma coisa fora do comum” (p. 3). Essa “coisa nunca vista” (subtítulo da narrativa), essa prenda especial e fraterna acabará por ser a própria missiva – e quem resiste às lindíssimas e divertidas ilustrações-prolongadoras-da-história de Manuela Bacelar, nas páginas 2 e 45, de uma menina divertida e sonhadora (a última), e do seu irmão mais novo, leitor sôfrego da carta, ou seja da aventura vivida/imaginada por Ana, como se o prodígio desta constituísse elemento impulsionador da própria leitura. 
Existe, por conseguinte, uma estrutura triádica em Ana-anA: 1. A heroína encontra o “Pai Natal-Só-Um” (um Pai Natal a sério e não uma imitação como a da montra da loja dos brinquedos); 2. viaja com o Pai Natal até uma terra e um casarão estranhos e mágicos (cena com os animais, episódio com o sábio professor Unapedra, episódio com Calíope); 3. o Pai Natal parte de helicóptero para a sua missão e, após troca de palavras com Félix, dá-se o mágico regresso de Ana, “num fechar e abrir de olhos” (p. 46) – atente-se na ordem dos verbos – à rua do Sol e, por fim, o retorno a casa, onde a história em forma de carta é contada.
No início (e num texto que contém breves alusões intertextuais a obras igualmente associáveis ao maravilhoso como o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, a Sereiazinha, de Andersen, e as Aventuras de Pinóquio de Collodi), a cena do encontro faz lembrar Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, tal como outros elementos mais adiante no texto: Ana olha a montra da loja de brinquedos, dir-se-ia um espelho; “atordoada” com os “gestos repetidos” (p. 4) do Pai Natal de plástico, é surpreendida pela voz do verdadeiro Pai Natal. Está, pois, no limiar do mundo segundo, onde vivem as criaturas mágicas mencionadas, e passa para o outro lado. O veículo transportador, que efectua a transição definitiva do mundo primário para esse mundo segundo, é uma simpática Dona Elvira de antanho, conduzida, aos solavancos, pelo Pai Natal.
Pelo meio do texto, ou melhor, nas suas entrelinhas, várias são as críticas que podemos ler: primeiramente, a uma sociedade que, no Natal, usa e abusa dos Pais Natais de imitação, o mesmo é dizer, a uma sociedade consumista que vive de aparências. E por isso o Pai Natal amigo de Ana é o verdadeiro Pai Natal, ou seja, Nicolau: “há terras onde toda a gente assim me chama por entender que sou esse Santo Nicolau que, como eu, tem séculos de idade. Também houve Papas, Duques e Czares assim chamados. É que Nicolau é nome bonito e soa a homem inteligente.” (p. 8). Isto declara o próprio Pai Natal. Na mesma lógica, a “coisa nunca vista” que Ana procurava para o irmão não será um brinquedo especial, um objecto industrial, mas sim uma carta, escrita por si, um gesto repleto de imaginação, graça e afecto, ou seja, um verdadeiro passaporte para o sonho e para o coração da própria Ana. 
Apraz-me encontrar aqui uma segunda crítica – algo pioneira, se pensarmos que foi escrita em 1986 – ao endeusamento da tecnologia, em especial, dos computadores, que desgraçadamente tem caracterizado a sociedade pós-industrial. Recordemos o que o sábio Unapedra (que vive rodeado, não de microscópios, tecnologia, mas sim de livros) ensina à jovem Ana: “– O Doutor Mafona, o grande sabedor, não tem coração. // – Mas nós podemos amá-lo, ou não podemos?”, pergunta Ana. Responde o professor: “– E porque não? Mas só seremos correspondidos se ele for concebido com amor e para dar amor. É que o Doutor Mafona não passa de eco de quem o planeou.” (pp. 28-29).
Ana (sublinhe-se, no título, a manipulação gráfico-semântica do nome: Ana-anA) – a menina que, por ter um nome-capicua, ou seja, um nome palíndromo, como lembra Ana Cristina Macedo (2018: 287), traz sorte ao Pai Natal, é ele próprio a reconhecê-lo –, vê-se assim exposta a uma espécie de pedagogia dos afectos que não fica por aqui. Jovem e confrontada com uma observação de Nicolau, dirá: “– Sinceramente, senhor Nicolau, não me parece que a inteligência se meça pelos anos de vida.” (p. 9). A questão “A inteligência mede-se pelos anos de vida?” será pois colocada quer a Unapedra quer a Calíope. O primeiro responderá com estas palavras, na visão de Ana, “bonitas” e “atinadas”:

“(…) longos anos de vida revertem em experiência, dão ocasião para se verem muitos lugares, conhecerem-se em abundância gente, animais, plantas e obras realizadas pelos homens. Mas quem, em longos anos de vida, não aprendeu a ler nos corações dos homens, a compreender a língua dos animais e o cheiro das plantas; quem não conseguiu ouvir a música nas palavras, nas cores, no rumorejar das águas e das árvores, pouco ganhou com a longevidade, pois nada de verdadeiramente válido saberá transmitir aos outros homens.” (p. 30).

Já a “musa-fada-bruxa” Calíope (na qual ecoam naturalmente Pseudo-Apolodoro, Virgílio, Ovídio…), a que fala por invulgares provérbios, como uma maga, terá, por seu lado, o condão de fazer Ana – esforçadamente e sob tensão – exprimir o seu próprio pensamento nestes sensatos termos: 

Acho que o conselho dos velhos tem valor. Ao conhecermos as suas experiências podemos corrigir uma data de erros. É como diz o meu pai: os mestres fazem-se aprendendo ao longo de muitos anos. Mas perdoem-me, Dona Calíope e Nicolau, não creio que a inteligência se meça apenas pelos anos de vida. Conheço pessoas que ainda não são velhas, mas inteligentes. Tenho companheiros de turma inteligentes – não te envaideças agora! – o meu irmãozinho Mico também é inteligente. (pp. 37-38). 

No fim de contas, a carta de Ana não descreve apenas as “lições” aprendidas e o modo como o seu olhar sobre o mundo se alargou e aprofundou, ela configura também uma educativa e afectuosa mensagem dirigida ao irmão mais novo, para quem a heroína se revela já, de algum modo, mestra de vida.
Em Ana-anA, Ilse Losa capricha nesta ou naquela comparação, nesta ou naquela metáfora mais original, nesta ou naquela tirada humorística mais especiosa, mas é nos diálogos, vivíssimos e divertidos, nomeadamente com Nicolau, o Pai Natal, que toda a graça da narrativa, plena de humor e de jogos em torno do que é lógico ou ilógico, surpreende o leitor ou leitora, ao mesmo tempo que o/a confronta com reflexões intemporais (e, por isso mesmo, actualíssimas), como se, já numa fase final da obra, algo de significativo sobre a sua mundividência quisesse Ilse Losa deixar em herança aos vindouros. E com tudo isto e mais ainda se tece também a vivacidade da própria enunciação narrativa, assente, sobretudo, no esquema epistolar que estilisticamente a condiciona. Virtualmente dialógico, o discurso faz com que irmã conte a irmão, em registo familiar, não raro interpelador, uma história que aspira a ter também o dom de o conquistar para a leitura1.
As belíssimas ilustrações, desenhadas e pintadas, de Manuela Bacelar caracterizam-se, em Ana-anA, e em consonância com o conto, por um apurado sentido de humor, bem característico da artista, pela expressividade dos rostos e por um certo gosto pela caricatura e pela hipérbole que cativam o/a leitor/a. A estes traços se juntam o cuidado na composição de cada imagem e a sempre conseguida combinação de cores e tonalidades. Um conjunto visualmente rico, capaz de criar um mundo com vida própria, em que o cómico e o lírico coexistem de forma particularmente tocante.

Nota

1 Para uma análise pormenorizada, informada e arguta de Ana-anA, leia-se Ana Cristina Vasconcelos de Macedo (2018: 282-294).

Referência bibliográfica

Macedo, Ana Cristina Vasconcelos de (2018). A Escrita de Ilse Losa para a Infância e a Juventude. Porto: Tropelias & Companhia.


José António Gomes

Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais (IELC) do INED da Escola Superior de Educação do Porto

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Uma novela para crianças e jovens em torno da orfandade e não só

Aprecio neste belo livro (Noa, Oficina do Livro, 2021) as ilustrações de Raquel Costa, que fogem a um certo gosto dominante hoje, em Portugal, no domínio da ilustração para a infância, bem como ao uso corrente e exclusivo, um tanto fácil parece-me, de certas técnicas com pouco de artesanal. Depois cada imagem é repleta de pequenos pormenores, sugestivos, criadores de atmosfera e de narratividade, poéticos e atentos à psicologia das personagens. É justo dizer que Raquel Costa sabe ler os textos literários que ilustra.

E a narrativa de Susana Cardoso Ferreira (escritora com vários livros editados e até publicamente distinguidos)? Ponto de partida das ilustrações de Raquel Costa, possui notória qualidade de conteúdo e de expressão, e certa tonalidade lírica, mas sem lamechice, não obstante o drama exposto (a orfandade, tanto a real, traumática, como a afectiva), narrado e descrito com contida intensidade. Uma escrita com elementos de originalidade, mesmo ao nível gráfico e de estruturação textual, que me agradam sobremaneira, com a prosa a parecer composta por versos longos, lembrando a poesia de Walt Whitman. Criada por quem conhece bem a Natureza, as plantas, os animais (que neste livro se revestem de grande importância, a começar por um simpático corvo), a história, além do mais, valoriza a infância mas também o crescimento, a maturação, a capacidade de superar adversidades – ao invés dalgumas glosas requentadas do complexo de Peter Pan (e de Roald Dahl) que por aí circulam, com reaccionário êxito, inexplicável (ou talvez não). 

Diga-se, finalmente, que Noa é uma novela. Uma novela em que a palavra, o texto literário se revestem de efectivo peso e valor, assumindo todo o seu poder. Por exemplo de interpelar, de comover, de fazer sorrir. E isso para o leitor que sou é fundamental, pois vai em contracorrente. Eis um livro que, ao contrário doutros, nunca poderia (sobre)viver sem a parte verbal, que é um texto literário de qualidade. Que viva pois a palavra. E as boas histórias. Contadas com originalidade, como a do livro em apreço. 

Esta história de Noa e de Paz (uma bem moldada personagem infantil) mereceu, com justiça, o Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância 2022 e foi distinguida pela inclusão na lista selectiva White Ravens, da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique.

 

José António Gomes 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto