terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal, de M. António Pina e Inês do Carmo – Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância

Ao conto “O cavalinho de pau do Menino Jesus” – originalmente editado, em 2004, pelo jornal Expresso, numa pequena colecção de três volumes, com uma componente visual muito apelativa da autoria de Danuta Wojciechowska – juntam-se, nesta obra de Manuel António Pina (MAP), ilustrada por Inês do Carmo, as narrativas “O sorriso” e “Mais depressa, Reis Magos, mais depressa!”.

No primeiro texto referido, “O cavalinho de pau do Menino Jesus”, convivem, num mesmo espaço ficcional, o Pai Natal e o Menino Jesus. Elidindo-se as fronteiras entre o universo cristão e o universo pagão e aproximando-se dois tempos distantes, conta-se, aqui, sempre num registo vivo e frequentemente dialógico, os preparativos, a viagem e a chegada do Pai Natal a Belém, depois de longas horas de trenó desde o Pólo Norte até ao estábulo onde nasceu o Menino Jesus, aludindo-se, ainda, sem apagar o seu natural dramatismo, ao desfecho da sua vida. A associação do Menino Jesus ao universo da infância e ao seu natural gosto infantil pelos brinquedos, desde logo, sugeridos pelo título, representa um dos aspectos mais atractivos do ponto de vista da recepção infantil deste texto. Numa apelativa construção literária de carácter lúdico, marcada por ecos de textos tão variados como o Evangelho ou o poema «Twas the night before Christmas», escrito, em 1822, por Clement Clark Moore, MAP dessacraliza figuras e episódios e, inventando gestos e situações católica ou biblicamente erradas, diverte o leitor.

No segundo conto mencionado, que se intitula “O sorriso” e é o primeiro da colectânea, o Menino Jesus ainda se encontra dentro da barriga da mãe, centrando-se o discurso nas próprias sensações, impressões e dúvidas do Deus-Menino. A humanização das figuras bíblicas e, em particular, a densidade psicológica que os dilemas confessados pelo Menino Jesus deixam pressentir fazem desta narrativa, cremos, uma das mais tocantes do universo literário português de destinatário preferencial infanto-juvenil. Um dos textos mais geniais de MAP, este conto confirma exemplarmente o carácter imaginativo e independente deste autor, já anunciado, aliás, em textos como “O menino Jesus não quer ser Deus”, presente em O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973).

A terceira narrativa que integra a colectânea, sendo protagonizada pelos Reis Magos, acompanhados pelas Rainhas Magas, desenvolve-se em torno do nascimento de Jesus. Este acontecimento é anunciado pela Estrela de Belém que se desloca à “Arábia Feliz” e, depois de uma espera quase desesperada, acaba por acompanhar os três (atrasados) Reis Magos até ao estábulo, já no dia de ano novo. No fundamental, o humor, frequentemente de raiz nonsensical, estrutura-se a partir da recriação dessacralizadora dos comportamentos das personagens ou, por outras palavras, na atribuição de certas características perfeitamente humanas e algumas, até, a reflectirem determinadas marcas de contemporaneidade. Recorde-se, por exemplo, que a “Estrela de Belém estava irritadísssima, farta de esperar. Ainda por cima tinha chegado o Dia de Ano Novo e o barulho era tal em toda a cidade, com fogo-de-artifício por todo o lado e gente a atirar latas e panelas para a rua, que a Estrela, muito aborrecida, quando os Reis Magos finalmente chegaram ao Palácio, os repreendeu...” (Pina, 2009: 17). Atente-se também no facto dos Reis Magos, já pais de “Principezinhos Magos”, serem casados com as Rainhas Magas e de estas também quererem ir adorar o Menino Jesus, tencionando levar-lhe “Uma (...) um bibe de seda, outra um guizo de prata e a terceira uma caixa de música com canções de Natal.” (idem, ibidem). Mesmo a figura bíblica da Nossa Senhora é alvo de um tratamento manifestamente inesperado: “(...) Nossa Senhora fitou-os com severidade: ‘Já estamos a 6 de Janeiro, viestes muito atrasados. Temos estado à vossa espera desde o Dia de Natal, pois estava escrito que viríeis nesse dia. Por pouco já não teríamos tempo de fugir para o Egipto.’” (idem, ibidem).

O efeito cómico deste conto surge reforçado ainda, de forma determinante, pelo uso insistente e muito pessoal da maiusculização de um número elevado de vocábulos e de expressões, criando-se, quanto a este aspecto, uma espécie de norma gramatical muito própria, como se verifica em “Piquenique”, “Escudeiro Mago”, “Caixa de Magia”,”Hipóteses”, “Florestas e Oásis”, “Alimentos”, “Outro Caminho”, entre outros.

Carla Maia de Almeida, que declara num atento post do seu blog, “Jardim Assombrado”, dedicado a este último livro de MAP, «A eleger um livro infantil do Natal de 2009, só pode ser este: O cavalinho de pau do Menino Jesus e outros contos de Natal», conclui «E se algum leitor considera isto [tudo, ou melhor, «essa história de um Menino Jesus inventado no Céu, nascido de uma mulher que "não tinha amado antes de o ter", como diz o poema de Alberto Caeiro, é a coisa mais triste que há»] uma heresia, é melhor passar ao lado do livro.». E, na verdade, importa sublinhar que estes três textos, com temática natalícia, mas aqui redimensionada segundo o estilo do autor, se estruturam sob o signo da paródia, substantivando, assim, um recurso paradigmático muito frequente na literatura pós-moderna. Tendo como ponto de partida a intertextualidade, a deformação criativa de um texto preexistente (principal proposição inerente à paródia enunciada por Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários), neste caso concreto, do texto bíblico, facilmente um objecto tido como historicamente modelar (na acepção do mesmo estudioso), alimenta a escrita dos textos da colectânea em divulgação, sendo, por vezes, alvo de uma salutar ironia e de uma contagiante criatividade, sustentadas por uma “liberdade livre”.

As ilustrações, em tons fortes e contrastantes, procuram seguir de perto o texto verbal, ainda que nem sempre com a eficácia e a coerência esperadas (veja-se, por exemplo, a recriação icónica discrepante do “cavalo de pau de crina dourada e arreios vermelhos”). Além disso, o discurso visual, apesar de ensaiar a representação dos momentos nucleares da acção e das personagens principais, carece, em certos momentos, de perspectiva, aspecto que, em determinados casos, é superado pelos jogos de luz e sombra, bem como de texturas. Genericamente feliz do ponto de vista da materialização pictórica de algumas das temáticas mais relevantes dos textos de MAP – por exemplo, o Natal, a infância, o amor ou a maternidade –, a componente ilustrativa parece, porém, “abstrair-se” do humor subtil e da intencionalidade subversiva que distinguem estas narrativas e que representam, aliás, dois dos traços mais singularizadores da produção literária do autor em causa.

Referência bibliográfica

PINA, Manuel António (2009). O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal (ilustrações de Inês do Carmo). Porto: Porto Editora.

Sara Reis da Silva

(Universidade do Minho | Membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Inicialmente publicado em Malasartes, n.º 19, Abril 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A Mamã Pôs um Ovo, de Babette Cole

Conhecíamo-la de alguns álbuns ingleses de humor irresistível, como The Trouble with Gran (1987), The Trouble with Grandad (1988), e de outros mais antigos, em tempos publicados pela Sá da Costa. Por isso, é bom ver Babette Cole editada em português, no seu suporte de eleição: o álbum para crianças nas primeiras idades. Em A Mamã Pôs um Ovo (Terramar, 1997), o texto é escasso, já que a ilustração diz quase tudo, num registo caricatural, de um humor um pouco selvagem a lembrar o "cartoon" – e com alguns olhares cúmplices dirigidos ao adulto.

Duas crianças riem-se de uma lição sobre sexualidade e reprodução, dada pelos pais de modo ridiculamente fantasista e pretensamente pedagógico. A opção dos mais pequenos é, então, explicar tudo, em termos realistas e descontraídos: "Pensamos que vocês não sabem como é que realmente se faz um bebé. Portanto, vamos fazer uns desenhos para vos mostrar como é!" Infantis, os desenhos são elucidativos. E – podemos garantir – sem pouparem no pormenor.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)